― Hmm, lembro vagamente de você ter me falado dessa tal senhora, hã...?
― Maeda, Rafa, senhora Mayumi Maeda... acho que te contei que foi o espólio dela que me permitiu comprar a parte do meu ex-sócio no antiquário, lembra? Foi uma separação comercial complicada... já nem íamos para a loja nos mesmos horários, mas faltava o capital para encerrar aquela sociedade que só atrasou meu lado...
― Separações complicadas são a sua especialidade, meu querido, a mulher pra casar com você devia pedir certidão negativa de encrenca com ‘ex’ em todas as varas de família desta metrópole ― voltou à carga com um novo palito, mas a azeitona desta vez escorregou para fora da travessa e da mesa, escapulindo zombeteira pelo piso de pedra calcária da varanda do bar. Rafael voltou-se para as luzes da piscina que começavam a ser ligadas automaticamente conforme diminuía a luminosidade; grupos familiares se juntavam em frente dos vestiários, a turma do tênis e os freqüentadores do fitness deixavam o clube com a aproximação do fim da tarde.
― .Rafito, minha relação com o Toninho estava desgastada, e o pior, afetando os negócios há um bom tempo; aquela era a mãe de todas as separações, o rompimento que eu precisava fazer de cabo a rabo, ao menos uma vez na vida. O caso é que, após a morte do senhor Motomasa Maeda, falecido marido da senhora Maeda, me vi com um lote de peças japonesas de alto valor... e catalogadas! Como se tudo obedecesse a uma conspiração feliz do destino, andava por aqui naquela época um dos maiores colecionadores de Nova York, Joseph Nemirovski; além de muitas outras coisas, dono de uma das mais importantes coleções de arte oriental do mundo...
― Agora lembrei dessa senhora... aliás, foi a melhor coisa que você fez, se livrar daquele encostado do teu ex-sócio. Filho de comendador estelionatário com fumos de nobreza falida, ninguém merece... ― Rafael fez uma careta de nojo lembrando da Porsche amarelo-gemada a bordo da qual o outro costumava circular pelas baladas da cidade. ― Se não me falha a memória você se deu mega bem...
― Bem? Foi a minha maior comissão individual, lavei a jega: bronzes de antes do xogunato, kakemonos de marfim, aquarelas, gravuras (dois Utamaros!), cerâmicas rakus... cê não faz idéia o que valiam as porras das tigelas da tiazinha! Há diversos estilos de cerâmica tradicional no Japão, origé, shino... mas a técnica do raku chega a ter dinastias familiares de artesãos cuja produção é única; as obras-primas dos verdadeiros mestres estão razoavelmente bem autenticadas. Ali havia um jogo de tigelas para a cerimônia do chá da sexta dinastia, a do mestre Sonyu, era uma caverna do Ali-Babá para um orientalista: komeki, a tartaruga, raku negro, kuruma, a roda da carroça, shigure, a chuva primaveril, que é raku vermelho... ganhei uma pequena fortuna e, é bom que fique claro, a senhora Maeda também recebeu cada centavo que lhe era de direito...
― Certo, certo, mas isso tudo é jornal de ontem, o que você chama de “pequena fortuna” te rendeu quase uma milheta de comissão, não? ― em relação a um gordo, o não-gordo é como se fosse um leigo no quesito comida; já o problema de um gordo que fica petiscando com um leigo, Rafa pensava, é que
o não-iniciado consegue conversar sem olhar para a comida. É quase ofensivo. Rafa já sentia todos os desconfortáveis sinais internos de que tinha excedido o limite de sólidos que seu atual estômago-anão lhe deixaria ingerir pelas próximas muitas horas. À sua frente, Pedro deitava falação, enxugava no Jack e sequer dignava um olhar aos bolinhos. Como em outras ocasiões, concluía descorçoadamente que só era um ex-gordo na aparência.
― Embora não o diga, sei que, para um filisteu como você, estas cifras parecem absurdas... mas o ponto não é esse, a senhora Maeda era uma pessoa feliz... talvez a única que já conheci na vida. Ela vinha de uma família muito tradicional de Osaka, descendente direta de Saigo Takamori, o último samurai da vida real, morto em 1877 batalhando de espada e armadura contra o exército Meiji... a família dela repudiou-a por ter se casado com o senhor Maeda, filho de um preparador de defuntos de Okinawa... eles casaram em segredo e vieram para a América do Sul, onde Maeda-san enricou montando uma cadeia de hotéis baratos para executivos japoneses com sede em São Paulo. Nunca tiveram filhos... viveram somente um para o outro por 55 anos até que ele morreu, dormindo, pouco antes de completar 87 anos; aí, é que a senhora Maeda resolveu liquidar tudo que a ligava ao passado nobre, conservando apenas os objetos que a lembrassem do marido. História danada de bonita.
Com a tesourinha de cortar charutos, Rafa abriu as pontas de dois Partagas 8-9-8 Lonsdale, passando um deles ao amigo e lhe estendendo o fogo. ― Um pouco triste, sim, mas... o que há aí que você nunca me contou?
― De uma única coisa ela não quis se desfazer do passado de solteira: um netsuke, uma pequena escultura de marfim usada no kimono de sensei Takamori; uma relíquia de família com valor de mercado... e o tal netsuke desapareceu na confusão do inventário, ela veio várias vezes ao nosso depósito ver se não tinha vindo por engano junto com as coisas que foram a leilão na Christie’s... ― Pedro tirou do charuto uma baforada de sentido prazer enquanto a mosquitada caía sobre eles com fúria e pontualidade naquele fim de tarde quente.
― É preciso estar atento para chegar à alma do Lonsdale, as primeiras tragadas trazem notas muitas fortes e ricas, deixam um travo apimentado, picante, não se assuste nem puxe demais, vale a pena aspirar sem pressa até alcançar os odores mais pungentes e amadeirados do final. Nada se compara a um bom Havana como ajuda para pensar, meu lindo, agora voltando... onde raios tinha ido parar o trequicho do vovô samurai?
― Sei lá meu, procurei, procurei e nada. Até hoje a senhora Maeda ainda me liga para perguntar se não achei o netsuke do ancestral... só que, o diabo é caviloso... quando liquidei o depósito acabei achando aquela porrinha Rafa, eu achei e não falei nada! Foi anos depois, minha mãe tinha acabado de falecer, eu tava na maior pindaíba depois de comprar a parte do Toninho na empresa e tal, resultado: liguei para o Nemirovski, vendi o breguetis e paguei um enterro decente pra minha mãe...
― Assaz louvável: usou o butim para o dever, não o prazer... não tem do que você...
― Mas, Rafa, você não entende?, a gente devia ser melhor, nós somos os meninos de ouro, lembra cara?, como naquele livro da Bessa-Luís que você me emprestou, nós nascemos em berço esplêndido e o unimos ao mérito... Me diga, por que catso fui prejudicar uma pessoa boa que só me fez o bem, por quê?...
― Calma aí Pepa, muita calma nessa hora, você tá confundindo tudinho, que bobagem!, ninguém precisa ser melhor do que é, na melhor das hipóteses tornamo-nos diferentes, piores, quase sempre que tentamos mudar algo, veja... o que distingue um homem do outro é o que distingue um violino de um Stradivarius: o verniz ― sinalizou mais duas cervejas para o garçom que dava as caras na varanda após longa ausência.
Pedro matou o bourbon numa talagada rápida e encarou Rafael diretamente. ― E então, a gente faz o mal e, se ninguém viu, fica por isso mesmo? Não há castigo?
― Ora, ora, ora, então o Raskolnikov do Jardim América quer de mim uma absolvição ou, quem sabe, poderia lhe vender uma indulgência com três anos de garantia. Não é melhor reservar o termo “mal” para coisas maiores, não? ― bateu a cinza grossa do charuto no cinzeiro de acrílico ― além do mais, contando pra mim, você sai da situação amoral, ou seja, se expõe ao julgamento de um outro. Nem tudo está perdido nas veredas da tua alma...
― Cara, desde então, venho sonhando com a minha mãe, um sonho recorrente mega-angustiante, outro dia sonhei que ela me dizia que tinha voltado pra morrer de novo e repetia: vê se não faz tudo errado desta vez... brr!
― Meu querido, acho que você alimenta sobre si próprio e a humanidade uma séria série de besteirol humanista, o homem quando cai na zona de sombra das regras sociais ― e este era o seu caso no affair Maeda ― é capaz de qualquer coisa. Como disse Ferlosio, é quando a perspectiva da punição está ausente que se evidencia a verdadeira moral; o blá-blá-blá pós-moderno fala tão mal do controle social, da sociedade do espetáculo, do Big Brother, que esquecemos que o bicho-homem não se encontra limitado pelos instintos. Sobra o quê? Lembro-lhe que o “mal” é a garantia da nossa possibilidade de escolha, para além das câmeras de vigilância, fora do Grande Olho social, o coração do homem é um abismo monótono de brutalidade e vícios.
― Você acha que sai tudo barato, que não acontece nada se quebrarmos a lei moral, que os erros não se acumulam no Karma?...
― Pedro Henrique, olha pra isso ― levantou a camisa pólo exibindo as pregas flácidas da pele do abdome ―, se há um cara que pode te dizer isso sou eu: nossos erros não se acumulam na alma. Se você me diz que há um Juiz Supremo tendo em vista sua pequena contravenção, te pergunto: e aquele carinha que passou a tarde toda enchendo o latão, pegou o carro, dirigiu 22 quilômetros na contramão, bateu de frente noutro carro que se incendiou e matou um casal, mandando para a UTI o filho deles que tinham acabado de ir buscar no hospital? ... Cê não acha que um suposto Tribunal de Instância Universal tem coisa maior pra gerenciar do que os teus pecadilhos?
(CONTINUA...)