domingo, 14 de dezembro de 2008

CONTINUUM



Estacionou o carro após três horas e meia de viagem, os labradores dispararam uma algazarra de lambidas e pulos; os latidos ecoavam no braço de encosta coberto da mata densa que envolvia a casa e descia em declive abrupto até as franjas da praia. Manuela recolhia ao santuário das suas crises; uma semana isolada de gente e celular desligado seria, mais uma vez, suficiente para recuperá-la ― os sócios que segurassem os BOs na agência. O caseiro e a mulher estariam fora no final de semana: um feriado religioso caindo no sábado. Finados, talvez.
Que importa, agora só lhe importava mesmo preparar um dry martini decente, se largar na rede da varanda de frente para a vegetação, ouvindo o mar à distância. Balançando de leve, sem pressa para se entregar ao livro em suas mãos, meio embalada pelos esbarrões dos cachorros e o canto dos pássaros, meio desperta pela sensação gelada dos dedos que mergulhava no copo, ela recorda o ponto exato em que largou o texto. Os olhos encontram na página a última frase lida: “... os limites do seu destino tinham sido traçados pelo seu desejo.”. Poucos compreendiam, e muitos se admiravam, desta capacidade que tinha de ficar só.
As duas marcaram o encontro no alto do morro. Uma delas, na verdade Jéssica é um travesti, já está esperando no barraco abandonado; há poucos objetos na cena, a mesa bamba e sem cadeiras, a cama é um madeirite apoiado em pés improvisados de tijolo baianinho e a espuma verde manchada por cima. Um sagrado coração de Maria na parede. Chega a mocinha: jeans largo, tênis de lona colorido e blusa de alças ― o cabelo curto lhe dá um certo ar de tomboy ― ; ela repara que Jéssica está sangrando, faz menção de ajudar, esta retira a mão.
Manu estica seu braço pelas costas da rede, sentindo na mão a textura agradável do algodão cru contra a cabeça. A traveca desfaz o primeiro dos dois embrulhos que trouxe: um trinta e oito com a numeração raspada; abre o tambor, conta as balas, entrega-o à outra.
― Tó aí, amapô, a minha parte eu fiz ― chupava o sangue do corte produzindo um barulho agudo. ― Fiz isso daqui cortando a carne pra você. Entendeu o caminho que te expliquei?
― Sua grana. Deixa comigo; a trilha sai dos fundos do barraco, certo? ― Jéssica confirmou com um aceno, ela guardou o berro e o outro pacote numa pochete que usava atravessada no tronco franzino. Despediram-se em silêncio.
Saiu quase correndo pela mata para aproveitar o resto de luz do dia. Um suor acre e viscoso se empastava na pele e os mosquitos a atacavam sem dó, mas o pior era uma ridícula lembrança que se intrometia no pensamento, uma frase de circo, hoje tem marmelada?!, repetida pela mente a cada vez que a arma dentro da bolsa se chocava contra os peitos. Procurou afastar essa bobagem da cabeça para se concentrar no caminho e em cada etapa que deveria seguir. Os cães iam estar muito ocupados para atrapalhar. Sem criados. Atravessou a cerca passando por baixo, contornou então o terreno pelo lado oeste.
Subiu no alpendre e parou alguns instantes para se acalmar; o coração batia tão forte que acreditou que poderiam escutar suas pancadas violentas na casa vazia. Hoje tem marmelada? Caminhava pisando de leve o assoalho de tábuas corridas, observando as vigas enormes de madeira envernizada no telhado enquanto se aproximava apoiando a mão livre na balaustrada. Escurecia rápido. Engatilhou o revólver puxando o cão lentamente para não fazer barulho; como calculara, o alvo estava de costas, agora perfeitamente visível. O braço estendido para fora, dedilhava distraidamente os cordões da rede.

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