domingo, 22 de novembro de 2009

a cama de Gonçalo Pires


Onde si rellatam os factos tais como foram sertificados nestes autos aquando da requisitação de huma cama na villa de são paullo durante visita de s. exa. o ouvidor real e da tomada da quall cama polos ofisiais da camara da sobredita villa.

Só o tempo mostra às vezes todo o bem que alguém fez, já o mal se percebe logo de cara. Naquela época o Brasil, colonizado por portugueses, holandeses e franceses, integrava os domínios dos reis Habsburgos conhecidos como os 3 Filipes de Espanha. Expandia-se a ocupação do país na direção do interior, vilas como São Paulo de Piratininga cresciam impulsionadas por uma gente orgulhosa e bravia. Era agosto de 1620.

De modo a não passarem vergonha com o rústico mobiliário da Casa da Câmara, os “homens bons” da vila de São Paulo discutem a melhor forma de acomodar o Ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho, incumbido de aplicar na colônia os rigorosos capítulos das Ordenações de Sua Majestade. O problema angustioso: não havia leitos decentes em toda a comarca e as notícias davam conta de que a liteira com redes de abrolho que transladava o alto dignitário já chegara a Cubatão.

Dormia-se in illo tempore segundo critérios étnicos: os brancos em camas, os negros em catres ou no duro chão da senzala e em redes os índios. Porém, as camas que serviam à classe senhorial paulistana não passavam de caixotes feitos na terra, mal se distinguindo das enxergas da escravaria. Seria um desdouro, uma incivilidade a manchar o nome e a fama da vila, se o magistrado itinerante tivesse de repousar os costados numa cama de negros!

Até que alguém se lembra da cama de Gonçalo Pires, uma bela cama de madeira carpintejada e coberta de rico dossel que ele trouxera da metrópole. Três expeditos vereadores vão requisitá-la na casa do dono que recusa todas as propostas, não empresta, não vende, não aluga e não cede a nenhum argumento. E ainda acrescenta: o senhor ouvidor que durma onde quiser, mas não na minha cama.

Diante da obstinada recusa, o juiz e o alcaide da vila mandam uma força municipal composta de dois oficiais armados com arcabuzes e seis índios com bordunas, machetes e cordas. Dois cabras são necessários para imobilizar um indignado Gonçalo Pires enquanto os índios desarmam a cama e a levam com o sobrecéu, os cobertores e lençóis de algodão rumo à Casa da Câmara, onde no dia seguinte iria dar descanso às fatigadas banhas do senhor Ouvidor.

Longos sete anos se passarão numa batalha jurídica na qual a câmara notifica, oferece compensações financeiras, ameaça, multa, roga e Gonçalo Pires sequer se digna a responder às mais altas autoridades da circunscrição. Amigos e conhecidos contavam que, perguntado, “... o quall respondeo que lha dessen como lha tomaram, que então a receberia”. Tal como o rio de Heráclito, que nunca é o mesmo a cada vez que se entra, o solerte Gonçalo sabia que aquela não era mais a sua cama.

4 comentários:

Dalva M. Ferreira disse...

E essa agora??? Bem que eu senti um cheirinho de chamuscado... Coincidência ou não, venho de ler o "As maluquices do imperador", do Paulo Setúbal. É costume velho esbulhar o povo. Fica frio.

filipe com i disse...

ah, é bom o livro? trata do 1º ou do 2º?

Unknown disse...

nuss neem parece verdadee neh! Quee coragem essa a de gonçalo! neem tinha entendido o poema de Mario de Andrade, obrigado ao fornecedor deste texto

Hugo Farias disse...

Muito interessante o texto. Serviu para um exclarecimento que eu buscava sobre este caso.
Exelente blog, parabéns. ^^