Onde si rellatam os factos tais como foram sertificados nestes autos aquando da requisitação de huma cama na villa de são paullo durante visita de s. exa. o ouvidor real e da tomada da quall cama polos ofisiais da camara da sobredita villa.
Só o tempo mostra às vezes todo o bem que alguém fez, já o mal se percebe logo de cara. Naquela época o Brasil, colonizado por portugueses, holandeses e franceses, integrava os domínios dos reis Habsburgos conhecidos como os 3 Filipes de Espanha. Expandia-se a ocupação do país na direção do interior, vilas como São Paulo de Piratininga cresciam impulsionadas por uma gente orgulhosa e bravia. Era agosto de 1620.
De modo a não passarem vergonha com o rústico mobiliário da Casa da Câmara, os “homens bons” da vila de São Paulo discutem a melhor forma de acomodar o Ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho, incumbido de aplicar na colônia os rigorosos capítulos das Ordenações de Sua Majestade. O problema angustioso: não havia leitos decentes em toda a comarca e as notícias davam conta de que a liteira com redes de abrolho que transladava o alto dignitário já chegara a Cubatão.
Dormia-se in illo tempore segundo critérios étnicos: os brancos em camas, os negros em catres ou no duro chão da senzala e em redes os índios. Porém, as camas que serviam à classe senhorial paulistana não passavam de caixotes feitos na terra, mal se distinguindo das enxergas da escravaria. Seria um desdouro, uma incivilidade a manchar o nome e a fama da vila, se o magistrado itinerante tivesse de repousar os costados numa cama de negros!
Até que alguém se lembra da cama de Gonçalo Pires, uma bela cama de madeira carpintejada e coberta de rico dossel que ele trouxera da metrópole. Três expeditos vereadores vão requisitá-la na casa do dono que recusa todas as propostas, não empresta, não vende, não aluga e não cede a nenhum argumento. E ainda acrescenta: o senhor ouvidor que durma onde quiser, mas não na minha cama.
Diante da obstinada recusa, o juiz e o alcaide da vila mandam uma força municipal composta de dois oficiais armados com arcabuzes e seis índios com bordunas, machetes e cordas. Dois cabras são necessários para imobilizar um indignado Gonçalo Pires enquanto os índios desarmam a cama e a levam com o sobrecéu, os cobertores e lençóis de algodão rumo à Casa da Câmara, onde no dia seguinte iria dar descanso às fatigadas banhas do senhor Ouvidor.
Longos sete anos se passarão numa batalha jurídica na qual a câmara notifica, oferece compensações financeiras, ameaça, multa, roga e Gonçalo Pires sequer se digna a responder às mais altas autoridades da circunscrição. Amigos e conhecidos contavam que, perguntado, “... o quall respondeo que lha dessen como lha tomaram, que então a receberia”. Tal como o rio de Heráclito, que nunca é o mesmo a cada vez que se entra, o solerte Gonçalo sabia que aquela não era mais a sua cama.
Só o tempo mostra às vezes todo o bem que alguém fez, já o mal se percebe logo de cara. Naquela época o Brasil, colonizado por portugueses, holandeses e franceses, integrava os domínios dos reis Habsburgos conhecidos como os 3 Filipes de Espanha. Expandia-se a ocupação do país na direção do interior, vilas como São Paulo de Piratininga cresciam impulsionadas por uma gente orgulhosa e bravia. Era agosto de 1620.
De modo a não passarem vergonha com o rústico mobiliário da Casa da Câmara, os “homens bons” da vila de São Paulo discutem a melhor forma de acomodar o Ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho, incumbido de aplicar na colônia os rigorosos capítulos das Ordenações de Sua Majestade. O problema angustioso: não havia leitos decentes em toda a comarca e as notícias davam conta de que a liteira com redes de abrolho que transladava o alto dignitário já chegara a Cubatão.
Dormia-se in illo tempore segundo critérios étnicos: os brancos em camas, os negros em catres ou no duro chão da senzala e em redes os índios. Porém, as camas que serviam à classe senhorial paulistana não passavam de caixotes feitos na terra, mal se distinguindo das enxergas da escravaria. Seria um desdouro, uma incivilidade a manchar o nome e a fama da vila, se o magistrado itinerante tivesse de repousar os costados numa cama de negros!
Até que alguém se lembra da cama de Gonçalo Pires, uma bela cama de madeira carpintejada e coberta de rico dossel que ele trouxera da metrópole. Três expeditos vereadores vão requisitá-la na casa do dono que recusa todas as propostas, não empresta, não vende, não aluga e não cede a nenhum argumento. E ainda acrescenta: o senhor ouvidor que durma onde quiser, mas não na minha cama.
Diante da obstinada recusa, o juiz e o alcaide da vila mandam uma força municipal composta de dois oficiais armados com arcabuzes e seis índios com bordunas, machetes e cordas. Dois cabras são necessários para imobilizar um indignado Gonçalo Pires enquanto os índios desarmam a cama e a levam com o sobrecéu, os cobertores e lençóis de algodão rumo à Casa da Câmara, onde no dia seguinte iria dar descanso às fatigadas banhas do senhor Ouvidor.
Longos sete anos se passarão numa batalha jurídica na qual a câmara notifica, oferece compensações financeiras, ameaça, multa, roga e Gonçalo Pires sequer se digna a responder às mais altas autoridades da circunscrição. Amigos e conhecidos contavam que, perguntado, “... o quall respondeo que lha dessen como lha tomaram, que então a receberia”. Tal como o rio de Heráclito, que nunca é o mesmo a cada vez que se entra, o solerte Gonçalo sabia que aquela não era mais a sua cama.
4 comentários:
E essa agora??? Bem que eu senti um cheirinho de chamuscado... Coincidência ou não, venho de ler o "As maluquices do imperador", do Paulo Setúbal. É costume velho esbulhar o povo. Fica frio.
ah, é bom o livro? trata do 1º ou do 2º?
nuss neem parece verdadee neh! Quee coragem essa a de gonçalo! neem tinha entendido o poema de Mario de Andrade, obrigado ao fornecedor deste texto
Muito interessante o texto. Serviu para um exclarecimento que eu buscava sobre este caso.
Exelente blog, parabéns. ^^
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