segunda-feira, 30 de março de 2009

o que falta à verdade para ser dita


desdobramentos fugidios de um pequeno território livre:

nunca descobri o que eram as tais “conversas de adulto”,

até porque nunca conheci realmente um “adulto”,

as pessoas que conheço, com o passar do tempo, e quando têm sorte, apenas

envelhecem, como as frutas que, ao invés de amadurecer, apodrecem diretamente;

muito poucas pessoas se tornam melhores do que a criança que foram,

a maioria acaba prisioneira de algumas, ou de muitas, das manias que inventou,

deve ser por isso que nunca encontrei pessoalmente um “sábio”,

embora conheça gente que é especialista nas mais variadas coisas;

na melhor das hipóteses, chega-se a conhecer muito sobre um pedaço do mundo,

mas desconheço quem saiba viver; aliás, a vida é um daqueles temas em que todos

falam no escuro, parece que quanto mais importante um assunto é, mais se fala dele

e menos se sabe também ― mas é MUITO deselegante mencionar este fato

em conversas sociais; o pouco que aprendi sobre “ser adulto”, diz respeito a fingir

que se sabe o que se está fazendo, ou dizendo, e para onde se está indo, curiosamente,

o fato de ninguém saber nada beneficia mais os conservadores e hipócritas do que

aguça a necessidade de mudar
; quando guri, no caminho da escola volta e meia cruzava

com a louca do bairro, a Lurdinha da Fausta, dizia os meses de floração de cada

planta, nomeava as espécies de cambaxirra, os montes, os córregos, cão, gente ou gato,

como sabia, se não trabalhava como os adultos e não ia à escola como as crianças?

“eu pergunto”, respondeu-me

quarta-feira, 25 de março de 2009

domingo, 22 de março de 2009

OS 3 UMBIGOS DO SONHO



Um sujeito nunca é dizível por inteiro. Ou porque é atravessado por enredos, uma cacofonia de vozes, imagens, falas que o constituem (o Outro), ou porque a própria ideia de sujeito tenha sido tramada previamente na interdiscursividade, enovelando o sujeito do inconsciente com o sujeito da comunidade ― vozes, palavras e figuras dos outros; espécie de tecido germinativo que dá origem ao psiquismo e cujo cordão umbilical alimenta nossa vida imaginária. Na fronteira dos múltiplos ‘eus’ internos com esses pequenos outros (‘eus’ heteronômicos), urde-se um descentramento radical: o que sou não é dado por uma essência, uma substância, nem por uma ideologia própria ou alheia; trata-se menos das vertentes da identidade, psicológica ou grupal, e mais das condições fundantes do ser ― sou a partir do que me é alheio, do indeciso ente que me sonha, daquilo que, para mim como para os outros, dorme no mistério.

Uma obra de arte, como um sonho, nunca pode ser interpretada por inteiro. Ali onde uma representação se forma, ela nos escapa em parte. A arte do sonho trança as fibras do que se apresenta e do que se representa, retorta onde o inconsciente se entranha no corpo, o sonho funciona como sistema de trocas entre a noite e o dia, a biologia e a cultura, atividade e repouso, apropriação e sujeição, a vida e a morte, o sono e a vigília. O espaço onírico oscila entre estados do Eu e do não-Eu, à maneira de um conjunto de matriochkas que se incluíssem e excluíssem reciprocamente, como se a subjetividade, expandindo-se ao infinito, pudesse colapsar o fora da sua (oni) presença, permitindo ao objeto existir na interioridade e na distância, ao espaço conter seu negativo e ao tempo um fechamento sobre si. A tamanha violência o aparelho psíquico reage neoformando, remodelando o que era economia instintiva em pulsional: o delírio é este universo concentracionário em que todos e cada um são, foram, poderão ser... Deus.

O sonho é elaborado dentro, mas tem de se fechar fora, ele só conserva sua substância com o fora. O corpo do deus Osíris flutua despedaçado sobre o Nilo, Ísis e Néftis sopram vida aos 42 pedaços, menos um, o pênis, comido por um peixe: a morte como castração final da vida, mas também como sua condição. Na dimensão mítica, só ao preço de se tornar virtual é que o falo poderá sustentar a potência fecundante, nela, o externo é convocado a completar o interno, a série se completa pela ausência, etc., etc.. Na obscuridade do sonho nascem os híbridos sensação-pensamento, organismos feitos de memória-percepção-signo cujo umbigo (boca, olho, vagina, ânus) ameaça tudo devorar. Sabemos quando estamos acordados, o que nunca temos certeza é se estamos sonhando. Até onde podemos saber acerca do enigma do sonho?

“Mesmo nos sonhos mais bem interpretados, é freqüente ter de deixar um lugar nas sombras, porque, na interpretação, percebe-se que ali há um emaranhado de pensamentos do sonho que não se deixa desenredar, mas que tampouco dá outra contribuição ao conteúdo do sonho. É o umbigo do sonho, o lugar onde ele repousa no desconhecido. Os pensamentos do sonho a que se tem acesso pela interpretação têm de permanecer, de forma geral, sem qualquer fechamento e partir em todas as direções na embaralhada rede de nosso mundo de pensamentos. De um lugar mais denso dessa rede surge o desejo do sonho como o cogumelo de seu micélio.” (Sigmund Freud).

Já neste primeiro umbigo, psicossomático, somos confrontados pelo impensável universal, material submetido ao recalque primordial, inacessível ao pensamento e à linguagem; no umbigo interpsíquico também o sentido deriva de uma formação arcaica nodal irrepresentável, nesta outra matriz onírica o campo é compartilhado, espaço onde circula um pensamento do sonho comum a vários sonhadores. Mas sabemos que os sonhos podem ultrapassar ainda este nível da telepatia grupal, do sonho coletivo: num terceiro bulbo do sonho se articulam o rito, o mito e a profecia.

Os indígenas da América inventaram diversos filtros de sonhos, para deixar passar os sonhos e barrar os pesadelos, manter os mortos longe dos vivos que dormem e afastar os espíritos nocivos dos lugares de purificação e cura; p.ex., os xamãs dos Algonquinos (Canadá) instalam teias de couro amarradas em ramos curvos, com penas colocadas a intervalos regulares em torno de nós ou contas. Dos umbigos do sonho emergem os meta-níveis: assim é o mito que vem interpretar o sonho, mito que é signo de uma outra língua, um signo de signo. Os índios já sabiam que são estes nós mais densos que revelam os sentidos ocultos da vida humana; para eles, os sonhos também são filtros de mitos.


quinta-feira, 19 de março de 2009

psigotica

agradar uma fêmea é como pegar um sapo na mão





Sônia fazia de conta que não estava casada com Vera, vivia atrás de qualquer balada, até bingo beneficente ou quermesse de paróquia serviam; em tais e tantas orgias andava, que a vizinhança até já tinha cansado de falar mal. De começo, ainda vá que respeitou dia de semana, depois a coisa desandou, o sábado começava na quinta e findava na terça; daí pra frente, tudo virou feriado e os dias da semana já não bastaram pra tantos convites. Sônia causava. Vestida de longo, exagerando no lamê e no strass, ela reinava nos bailes do Andrade, deslumbrava nas matinês da Sociedade Operária, arrasava na festa do Havaí do clube Água Verde e, das domingueiras do Tiradentes, só voltava segunda de manhã, maquiagem desfeita, meias-calça rotas, sapato de salto quatorze na mão. Vera ainda lhe fazia um café forte antes de sair para o serviço.

Vera sempre fumando, somítica de tão magrinha. Ralava horrores na hora extra para pagar faturas de cartão, sua vida era uma consumição: levantar papagaios, cobrir empréstimos, discutir com gerente de banco pra aumentar o limite do especial, parcelar dívidas; vivia numa dobadoura atrás de agiotas e factorings, tudo em nome de manter o padrão de vida da casa. Como era assessora de deputado estadual, trabalhava de verdade enquanto o “doutor” bonecão deputava ― em todos os sentidos. Eram dois celulares e um nextel tocando o dia todo, com requisições deste, pedido de emprego praquele, associações disto e daquilo buzinando no ouvido dela. Seu único luxo era o cigarro ― dois maços de Carlton prateado por dia. Além disso, fazia bicos de repórter freelance pra uma revista de aviação e pegava uns trocados testando remédios novos para uma indústria farmacêutica. Sônia embirrava com este “trampo de cobaia”, como costumava dizer.

Aline, sobrinha de Vera, morava com elas na casa de dois cômodos, própria, único bem de família que o pai cachaceiro de Sônia não conseguiu beber. A moça era autista, a mãe não a quis levar para Camocim quando se casou pela segunda vez; a avó era falecida e sobrou pra Vera criar a menina, que dava trabalheira por dez. Quem cuidava mesmo era Sônia, já que Vera saía pra trabalhar e também não tinha muita paciência pra essas coisas. Aline não falava, não comia sozinha, não se vestia sem ajuda, se pelava de medo de ir em médico e dentista só lhe mexia na boca com ela debaixo de anestesia geral. Até as necessidades Sônia tinha de lhe ajudar a limpar. Seu único vício era comer os fósforos queimados que Vera espalhava pelos cinzeiros da casa. Problemas havia, mas eram uma família.

Até que P. chegou.

sábado, 14 de março de 2009

Todo Cuidado é Pouco com os “Operadores Simbólicos”!


ilustrador: Bruno Urbanavicius
No meio de uma entrevista a um repórter francês, na maior cara lavada, John Kenneth Galbraith saiu-se com esta: “no atual estágio da tecnoestrutura capitalista, uma empresa como a GM não precisa buscar primordialmente a maximização dos seus lucros”. Passados 39 anos e com a tsunami econômico-financeira devastando o planeta, incluindo a própria General Motors, as palavras do conselheiro de John Kennedy e professor de Harvard não soam irônicas e/ou proféticas ― são (e eram) mentira pura. Aquele tipo de bravata arrogante de quem deitou banca demais, falação demais, para um monte de baba-ovos acríticos. Nos anos 60-70, J.K. Galbraith era “o” cara: dava pitaco sobre moda, economia, política, comportamento e até, se bobeassem, na escalação do meio de campo do Olaria.

Pulando para os 80, um outro guru da economia sacou do colete a “Terceira Onda” da civilização humana; na esteira da Revolução Agrícola e da Revolução Industrial, Alvin Toffler prognosticava a Era da Informação, em que predominariam as empresas de serviços e os profissionais que ele chamava de “operadores simbólicos”. Quem seriam esses obreiros do virtual? Nada de tão novo assim: aquele tipo de gente que não fabrica um prego, não aperta uma arruela etrusca, nem é capaz de compor um pagodinho em hebraico clássico, profissionais cujo trabalho consiste primariamente em operações abstratas realizadas sobre bases de dados simbólicos e que, acrescentemos, se c... um monte para as conseqüências práticas das mandracarias que fazem.

Ao contrário da patranha galbraitiana, a ideia de Toffler faz algum sentido, muito embora uma definição tão ampla acabe por incluir quase qualquer atividade humana, por exemplo, o projetista de uma sonda espacial, o desenvolvedor de Linux, o estilista de uma grife de alta costura, o anotador de jogo do bicho e o menino da pipa que sinaliza a polícia para o traficante, estão manipulando códigos, signos e meta-linguagens com inúmeras camadas de sentidos e vários graus de abstração ― o que os qualifica, portanto, como “operadores simbólicos”. Duas categorias destes profissionais etéreos, no entanto, vêm chamando a atenção hoje em dia, o “povo do mercado” e os “formadores de opinião”. Deles aguardamos as mais deslavadas mistificações.

Os tratados de alquimia diziam que o que está em cima é como o que está em baixo, tal como o que parece à direita, pode estar à esquerda e vice versa. Um presidente da federação dos bancos (concessão pública), que pega dinheiro do governo e empresta a juros 10 vezes maiores e não quer ser chamado de sacana, pode muito bem ser um dirigente esquerdista ao molde soviético. Já um sindicalista que gere um fundo de pensão de uma mega estatal, na verdade é um big player... do mercado! Diante do atual estouro das Bolsas, o povo do mercado vai insistir em potocas como “o estouro de bolhas especulativas faz parte da dinâmica capitalista”, “as bolhas são cíclicas e geram riqueza no processo”, ou ainda, “o capitalismo é melhor que suas alternativas porque sobreviveu a elas” e assim por diante. Já os ideólogos da Bolha podem encampar a tese de que houve no Brasil (e já estaria encerrada) uma tal de “ditabranda” militar.

Ou seja, a quartelada dos milicos brazucas teria sido soft comparada com nossos hermanos (hahahaha). A Bolha (da fama) e a Bolsa (de valores?) estão com problemas de, digamos, densidade ontológica ― todo cuidado é pouco.

domingo, 8 de março de 2009

quase-ensaio sobre Khôra, o informe

ilustração de Bruno Urbanavicius

Perde-se na noite dos tempos a origem da noção de que participamos de dois mundos, um, material e captado pelos sentidos, outro, sutil e apenas acessível ao espírito. Platão entendia que no primeiro deles vivem os seres visíveis e, portanto, sujeitos às vicissitudes do nascimento e da morte, chamados por ele de Cópias (mimemas); estes, não passam de sombras dos seres ideais e imutáveis que vivem no mundo eterno dos Modelos (paradeigmatos).

O mesmo filósofo, porém, nos advertiu da existência de um terceiro gênero (triton genos) de seres, vivendo num mundo situado entre o espiritual superior e o reino de corrupção da matéria, ou entre o que é imediatamente percebido pelos sentidos e o que pede a mediação do inteligível ― uma realidade entre realidades, mas que não é estranha a nenhuma das outras.

A Khôra pode ser entendida como um lugar (topos), uma matriz, um receptáculo de marcas evanescentes ― diria que é um não-lugar que dá lugar e “coisidade” aos outros lugares e coisas. Não se pode compará-la a um substrato, um campo, tampouco a um espaço: Khôra é onde se assentam sítios e situações, podemos supô-la sem que seja representável (muito embora seja condição de toda representação). Ela não existe, mas é.

Estas considerações trazem associações com a comunicação, na qual, até mesmo em meio às metáforas inertes das falas ordinárias, intervém a autonomia arbitrária do significante. Como (re)produzir uma tal superfície virgem de recepção e ressonância, onde localizar este terceiro que espreita o discurso na relação incerta entre fala e linguagem? A tentação aqui é tornar homólogos o suporte pictográfico da representação e a primeiridade originária do informe, cuja liberdade divina não conhece limites.

O informe (amorphon) não guarda nada do que recebe e, por isso, tem de ser constantemente reinstaurado. Sendo o lugar dos lugares, Khôra se manifesta como “o que vem ao falar”, vale dizer, como região em que se inscrevem, ou ainda, o aspecto que tomam as coisas quando são faladas num dado local e momento. É nas sensações confusas que trazemos de quando a memória não alcança, que a linguagem reencontra a fonte e a força, sua figura e seu nome.

Espécie invisível, porta-traços destituído de propriedades, não atingimos Khôra mediados pela razão (logos), nem pela via direta da experiência estética, a alternativa mito-poética; é preciso um tipo de raciocínio híbrido (logismoi nothoi), um pensamento que tanto carece de lucidez, quanto se abre à profecia. Tamanha negatividade anacrônica ela comporta que mal lhe podemos dar crédito: seu discurso inaudível, as figuras (schemata) que engendra, se anunciam/enunciam como um sonho.

sábado, 7 de março de 2009

a mirada anterior

foto de Maria do Carmo Valente



O mundo em que vivemos, sentimos, pensamos, agimos, aparece desfigurado ao acordar na correnteza ou emprestado para ruínas em construção.

Parâmetros calcinados de um lar insuportável.

É um mundo de beleza tumultuária, assustador e aconchegante, que se manifesta/dissipa, em que cenários tombam congelados sentidos; onde não há razão de ser, apenas a necessidade de ver.

È um Real de maravilhas noturnas, mas sempre, e em última instância, imaginário-assassino

Desativar o prodígio, suspender desertos e opiniões latentes ao lesco-lesco de todos os dias: ser Deus sem ter que acreditar nisso!

Todos já tivemos esse olhar, essa capacidade de antecipar o silêncio, já soubemos (sob a pele) do material instante em que a duração pausa no destempo das pulsantes dinâmicas.

Interessa recuperar a comunhão direta das coisas, ouvir o rumor da inquietude quando cai a existência da cidade interna.

A outra vida está aqui, nunca mais será agora.

um lugar entre



foto de Maria do Carmo Valente

terça-feira, 3 de março de 2009

DESASTRE EM CURSO

foto de Carlos Patrício

À maneira de Lorca diria:
soy perro lunar, ando com a luz
coberto de jornais eu dormia
a rilhar dentes espantos pregos pus

dedico-me à miséria pisoteada,
luxo, solidão, finanças, fúria,
amo tudo que é barato ou lírico,
mas faço maus negócios no escuro,

na cantoria de estrelas tísicas
a vênus das peles procuro,
sou transurbano, multivíduo,

fábricas de signos consumo,
alienação: temporânea cultura,
no corpo, o morto e o vivo misturo

domingo, 1 de março de 2009

Pureza


Faz sentido colocar-se a nu se quer receber alguém em sua nudez.

Natural questionar a própria lucidez se quer comunicação com os que duvidam da própria.

Necessário perder um pouco do chão se quer diálogo com os aéreos.

Quem já perdeu o verniz da vestal e permitiu-se mácula pode viver o mundo com amor.

Não voltarás como tu mesmo e o que já foste nunca mais o será. Perder-te-ás. Mas falarás em muitas línguas e olharás com olhos de bondade, humor e tolerância para a imensa aventura que as crianças empreendem.