quinta-feira, 12 de novembro de 2009

a história é uma visão-pensamento do que aconteceu

foto de Alex Branco

Queridos tios V. e R.:

Depois de pesar muitos prós e contras, resolvi que era hora de falar com vocês da perda que nos atingiu recentemente, o trágico falecimento da tia L. Preocupava-me a princípio se não seria pior ficar a remexer no que talvez lhes dê melhor azo a oração, perdão e esquecimento, por outro lado, me angustiava com a atitude omissa numa hora delicada da vida familiar. Se não encontrarem consolo nestas palavras, que vos fique ao menos a intenção dele; melhor achei correr o risco do que silenciar com quem sempre foi generoso e acolhedor para comigo e os meus.

Na vida profissional e pessoal passei por diversas vezes a situação de perder o convívio de alguém que escolheu a morte voluntária, o auto-sacrifício. Isto me ensinou alguma coisa? Sim e não, já que nem todas as lições da vida são dizíveis, quer dizer, não vos saberia aqui expressar o muito ou pouco que aprendi, mas acabei por desenvolver uma certa maneira (instintiva) de agir quando as situações concretas sobrevêm. Há um tipo de conhecimento que não acessa o juízo: está em nós como que tatuado ou marcado a ferro, cosido às tripas.

No entanto, o mais árduo, incerto ― e ainda inacabado ―, aprendizado diz respeito a não julgar. De tempos em tempos preciso que me lembrem que sou apenas (e na melhor das hipóteses) um simples curador, não um magistrado. Para começar a saber julgar os outros e a mim mesmo precisaria talvez viver toda uma outra vida de novo ― e não estou certo de que alcançasse grandes resultados. A passagem dos anos na janela da profissão me ensinou que o conhecimento é tanto mais precário quanto mais se aproxima da mente e dos sentimentos das pessoas. Mesmo com todas as técnicas terapêuticas, avanços científicos e pílulas, o sofrimento humano ainda é vastamente indomável. Acredito que a tia fez o que fez porque tinha esgotado todos os seus recursos contra a dor de viver.

Dizem que há no universo uma radiação que veio da explosão inicial que originou estrelas, galáxias e buracos negros, o chamado “ruído de fundo” do cosmos. Conosco se dá o mesmo: desde o nascimento temos que lidar com a falta, falta comida, falta água, falta ar, falta amor. Tudo isso precisamos doravante obter do mundo, e é a dor, o constante ruído de fundo da necessidade, que nos move em busca do que falta. A dor de existir não é uma abstração de poetas, é coisa a que todos devemos nos habituar desde o berço, algo como um veludo negro que dá realce às jóias raras da nossa alegria.

Podemos comparar esta dor fundamental com os zumbidos de ouvido, que pioram com o silêncio e a escuridão. Mas que fique bem claro e assente: esta treva silenciosa não reflete a solidão que advém do abandono da sociedade, da família ou dos amigos, é antes efeito de um desterro da alma, o abandono de quem está intimamente perdido de si mesmo.

O suicídio é um crime sem criminoso, um crime contra a vida que deixa culpados os que não morreram. Quero poder lembrar da tia L. sem culpa, até porque todas as memórias que tenho dela são de uma pessoa viva, estridentemente viva, retumbante em suas opiniões e posições políticas, uma mulher bonita, passional e cheia de contradições (como todos nós somos, aliás). L.R.F. foi muitas coisas enquanto viveu e muitas continuará sendo enquanto viverem os que a conhecem e amam; seu gesto final não tem o poder de a resumir. Não há de ser o último acorde que definirá uma sinfonia.

Passei a infância escutando dos adultos o quanto era parecido com ela nos menores detalhes do rosto, do jeito, do caráter; minha avó materna me chamava de “L.inho”, e tenho disso muito, muito orgulho. Se há uma coisa de que não sofro é de vergonha ou mágoa das minhas raízes, reconheço em todos aqueles, familiares ou não, amigos e inimigos que fizeram parte da minha biografia, a parcela que depositaram no amontoado de partes e restos que sou hoje. Afirmo sem pudor a minha história, sou feito de tudo que vivi e de todos que passaram, passam e passarão na minha vida.

A grande riqueza da vida são as pessoas que amamos verdadeiramente, a grande tristeza da vida é que perdemos essas pessoas, o grande consolo é que o amor fica ― tudo passa com o tempo, só as obras do amor permanecem em sua fragilidade pertinaz. Recebam um beijo carinhoso do sobrinho que os ama,

M.

2 comentários:

mauverde disse...

Lindo texto, cara. Delicado, corajoso. Muito bonito. Acho que não tenho muito o que comentar dele, mas é um texto maior, o exame da continuidade, do amor que se manifesta nesses laços (a foto é particularmente feliz), o resgate da memória dela, o que és e o que disso decorre... Rico!
Obrigado.

mauverde disse...

Falando nisso, hoje faz dezesseis anos que me casei pela primeira vez...