domingo, 19 de outubro de 2008

iguaria canibal



Eu poderia ter sido qualquer pessoa, menos eu mesmo. É difícil explicar isso, assim, sem meias tintas, mas é que não foi fácil ter nascido com um destino tão especial. Pode-se nascer debaixo de estrelas boas ou de estrelas ruins, são coisas que sucedem. Qualquer uma mesmo serviria, qualquer outra vida, menos talvez ser piolho. Detestaria ficar pegado em algo como cabelo, me alimentar de restos de cabelo ou ficar chupando sangue ― isso nunca! Posso dizer que toda minha vida lutei para não me tornar um inseto, fora isso, teria topado de tudo. Começou bem cedo esse negócio de ver o Olho por todos os lados; lembro que era bem garoto ainda e tinha convulsões. Começava com dor de ouvido (tinha muitas infecções de ouvido), depois vinham os febrões, febres altas que me deixavam de cama achando que ia morrer. Às vezes dormia no hospital, essas eram as piores noites. Um dia acordei de uma dessas febres, ou não, vai saber, e lá estava ele: desenhado na parede, bem grande. Não fazia nada, nunca fez nada, a não ser ficar lá, parado, sem piscar nem virar para os lados. Um Olho gigante, parado, estalado em cima de mim. Depois de umas decepções, percebi que não devia falar dele com ninguém, ninguém leva na boa, além do quê, o que os outros podiam fazer? Dei de achar que era diferente dos outros, aquela coisa atraía e enojava, tá certo, mas era só minha comigo. Comecei a entender que todo bicho que a gente come, a gente não fica sabendo o que fazem com os olhos: vaca, cabrito, ovelha, frango... Só os peixes vão pra mesa inteiros, os porcos também, às vezes. Foi quando deixei de gostar de multidões, que me recordam nuvens de moscas ou como que um rebanho de olhos; sempre tenho a sensação que as multidões se juntam atrás de sangue e isso não posso aceitar. Daí que procuro trabalhos em que possa quedar sozinho, sem inimigo rumor, que não me venha ninguém bisbilhotar minhas funções. Outro ponto: odeio câmeras de vigilância. Esses aparelhinhos me dão nervoso, os outros nem ligam, se acostumaram já, parece que. “As imagens ficarão arquivadas, sendo de uso privado e sigiloso”. Uma ova! Humilhação danada e ninguém dá por ela. Ou faz que não atenta. Um desses dias sonhei pesadelo que pegava um facão e lenhava o pé de tamarindo da casa de minha tia ― o tamarineiro gemia como coisa viva. Daí não era mais árvore, mas gente, uma mulher desconhecida se esvaindo; saí correndo dali, corri, corri, me escondi na floresta, só que aí a lua tinha virado o Olho e não me dava sossego, então corri para o mar e nadei para o fundo e lá veio um peixe que me engoliu. Às vezes penso que a moça devia ser polícia ou coisa que o valha, muitas vezes pergunto: será se tenho problema de consciência?



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