segunda-feira, 13 de outubro de 2008

TUDO PODERIA TER SIDO DIFERENTE (?)



“Na vida histórica tudo está carregado de bastardia, como se ela mesma entrasse essencialmente na fecundação de processos espirituais maiores.”
Jacob Burckhardt


Persépolis, ano 480 antes de Cristo. Esta manhã há no ar a incrível fragrância das rosas do Paraíso e também as inúteis perguntas: haverá guerra, fome, crises, pestes, catástrofes? Desde então poucas coisas mudaram, no entanto, espíritos recalcitrantes e amigos das especulações ociosas ainda se perguntam como é que tudo poderia ter sido se...

Xerxes convoca uma assembléia de nobres, generais e altos dignitários persas para decidir os rumos da expansão do Império. Há dez anos os gregos estão atravessados na garganta dos medo-persas. O pêndulo das opiniões se inclina na direção do poente: todos concordam que a Grécia deve ser o alvo, Dario precisa ser vingado. Artábanos, tio de Xerxes é a única voz dissonante entre os que tomam a palavra.

A posteriori, mesmo o aleatório, o irracional e o incongruente ganham feições regulares, marcadas seja por uma determinação férrea, seja por uma necessidade incontornável. Retrospectivamente, pode-se atribuir exatamente o que escapava aos atores e ao placo dos acontecimentos: unidade no tempo e no espaço ― a trama e o texto grandiosos dos grandes momentos. O finalismo na história acomoda fatos e eventos heteróclitos e/ou desconexos da vida de indivíduos e povos em rumos predeterminados, submetendo o acidental ao universal, o capricho ao desígnio consciente, o acaso cego ao destino manifesto.

Durante aquela noite o rei sonha com um homem “alto e belo” que o incita a ir à guerra. Seria a alma de seu pai, ou o emissário de algum deus? Xerxes chama Artábanos a seus aposentos e lhe conta o sonho, ao que este lhe responde com espantosa presciência: “os sonhos que, errantes, vêm obsedar os homens, não são enviados pelos deuses; aquilo que em geral nos vem obsedar em sonhos sob a forma de visões é aquilo em que pensamos durante o dia.”

O monarca hesita, talvez fosse melhor tomar o rumo do Oriente, onde as conquistas seriam porventura mais fáceis. Na noite seguinte o mesmo homem lhe aparece e, furioso, o ameaça com a ruína se não fizer guerra aos gregos. Assustado, mas ainda em dúvida, chama novamente Artábanos que desta vez lhe propõe um estratagema: dormiria na cama do rei vestido como ele e, caso se tratasse de um fantasma maligno e não de um ser divino, haveriam de enganá-lo.

O sonho se repetiu. A guerra e a derrota persa também. Há homens que não repetem acordados a sabedoria que em sonho manifestam; menos comum é o caso contrário. Os créditos da vitória colheu-os a orgulhosa Atenas que, inebriada com seu próprio esplendor, se auto-intitulou de “Escola da Hélade”. A hybris ateniense custou-lhe tudo: usurpar o tesouro da Liga de Delos para embelezar a cidade foi o gatilho da Guerra do Peloponeso (430-421 e 415-404 a.C.), que acelerou a decadência da civilização helênica.

Passa-se um século até que os macedônios, vindos da periferia do mundo helênico, retomam o sonho ático de grandeza. Tendo seu pai unificado as cidades-estado, Alexandre, o Grande, volta-se então na direção da Pérsia, o inteiramente outro da Grécia, e constrói um império efêmero que vai do Egito ao Indo. Ocorre que nesta época o que os povos ocidentais aos gregos mais ansiavam era segurança e unidade, o que o império macedônico oferecia com vantagens: construção de cidades, legados institucionais e culturais e, de quebra, TOLERÂNCIA RELIGIOSA.

Há evidências de que Alexandre tinha planos para o Mediterrâneo, p.ex., no Egito, onde mais foi aclamado do que conquistou, fundou uma de muitas Alexandrias e lá instalou a dinastia dos Ptolomeus (a mesma de Cleópatra), na Palestina, instalou colônias sírias (mais tarde expulsas por Judas Macabeu) ― mas o fato é que a sua bússola apontou para Oeste, ao contrário de Xerxes. Houvesse ido na direção oposta e nosso exercício de possibilidades começaria por imaginar um mundo em que as condições iniciais de expansão e desenvolvimento do Império Romano não existissem...

Caso os romanos não tivessem prevalecido na região mediterrânea, teriam os judeus sido abarcados numa satrápia mais tolerante com sua peculiar religião? Teriam as revoltas da Judéia, como as de 65-70 d.C., sido reprimidas com a violência que os romanos empregaram? Poderia o Cristo não ter sido crucificado? Se este tivesse sido o caso, podemos nos sentir tentados a pensar que seus discípulos, não necessitando da assimilação romana, não teriam distorcido os fatos de modo a culpar os judeus pela morte do Messias (motivo de shoahs, pogroms e inquisições sem fim).

Jesus, filho de uma adolescente grávida e de um carpinteiro, não seria um mártir; o Filho do Homem não precisaria lavar nossos pecados com o seu sangue e ainda assim deixaria um exemplo de caridade e sua palavra teria a mesma força redentora. Mistificando a morte do seu profeta, os cristãos criaram um pastiche da eleição do povo de Israel com a dominação romana: uma fé militante combinada a uma vocação de universalidade fundada na intolerância ao ‘Outro’ ― o bárbaro, o não batizado, o não convertido, o infiel.

Quem sabe então as grandes religiões monoteístas falassem menos do Deus morto, guerreiro, vingador, mas daquele que acolhe, consola e perdoa ― quem sabe a religião deixasse de servir de justificativa para odiar, temer e explorar os ha goyim (outras nações) ou motivo para guerras santas (jihads)?

Jerusalém, 33 d.C., Jesus vê na moeda o perfil de César, mas... e se fosse o de Alexandre?
(Este texto deve seu argumento central a Maurício Fernandes)

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