sábado, 29 de maio de 2010

O espólio da senhora Maeda, a moral de Ferlosio e o paradoxo de Bayle (epílogo)

Deu-se conta de que os mosquitos concentravam quase que exclusivamente nele a sua sanha sanguinária, sempre tinha sido assim, o sangue-doce da roda; Rafa caçoava dizendo que mamãe tinha passado açúcar nele. Nesta linha de associações, seus pensamentos o levaram a uma reflexão que precisava compartilhar naquele momento. As outras mesas do piano-bar começavam a ser ocupadas; inclinou-se na direção do amigo baixando o tom de voz.

— Rafa, acho que descobri porque é que todas as minhas estórias com mulher enroscam... não, não ri, é sério: eu roubo elas. Verdade cara, sempre acabo ficando com alguma coisa delas e daí resulta que não consigo me livrar depois...

— Putzgrila queridão, você está numas de auto-flagelação hoje! — o charuto apagara e ele revirava os bolsos atrás do isqueiro que jazia sobre a mesa. — Você já considerou o uso regular de um cilício?...

— Pensa bem: ao me apropriar daquele pequeno item da herança da senhora Maeda, fiquei ligado a ela e é por isso que a minha mãe aparece em sonhos me recriminando... hmm, você não está me levando a sério!

— Pelo contrário, lindo, é que simplesmente há outras leituras para o mesmo fato, por exemplo, você pode muito bem ter livrado a japinha de uma relíquia da família que a repudiou: uma libertação ao invés de um roubo, portanto. — tendo finalmente achado o isqueiro, presenteou-se com uma longa baforada antes de prosseguir. — Mas ainda vou mais longe, o que está te acontecendo é um fenômeno comum depois dos cinqüenta: a visitação dos fantasmas torna-se coabitação. Você já reparou como a gente vai tendo cada vez mais flashbacks quando dobra o Cabo da Boa Esperança? Quanto mais vivemos, mais se confundem erros e acertos, ídolos e monstros, personagens do presente e do passado a carregar com verdades e mentiras o cabaz... acho que estou me tornando politeísta, Pepa, o que move o palco das paixões são deuses menores, daimons e deusas caídas... deus com maiúscula?, habita o território vazio da palavra e da morte.

Pedro Henrique avaliou o sapatênis do amigo, que sentou com a perna cruzada sobre a coxa formando um 4 levemente despencado para a frente, enquanto mantinha a mão direita apoiada no joelho dobrado. Fazia apenas dois anos que os estatutos tinham liberado o uso de calçados não estritamente sociais naquele andar da sede, em mais alguns anos se veria sócios em chinelo de dedo no salão nobre do tradicional clube paulistano. — Então nada de um desígnio, uma divina providência, um plano maior para tudo isso, não há um sentido moral no universo, é isso, ou melhor, é só isso a parte que nos cabe neste latifúndio?

— Além do que, imagina, a desproporção de escala entre o indivíduo e o Uno torna a relação entre ambos impensável... só se O interessarmos a título de um circo de freaks, uma diversão grotesca mas ligeira, como um teatro de pulgas ou uma corrida de baratas...

— Gozado aquilo que você falou... tava aqui pensando, sabia que o samurai, primeiro dono daquela escultura que vendi, morreu aos cinqüentinha? Esse não teve tempo de viver acossado por espectros...

— Uma pinóia, guerreiros vivem assombrados por profissão... olha lá, não, do outro lado, tá vendo o Vitché?, tenho uma ótima pra te contar... — Rafael apagou o Lonsdale no cinzeiro de acrílico com o emblema do clube e lançou um olhar de esguelha à bandeja de salgadinhos. — Será possível que você ainda não ouviu essa? Pois então, nosso amigo Vitché Loco e o Barsante, ignorantes ou esquecidos da instalação de câmeras nos vestiários, foram flagrados no novo circuito interno no maior sambarilove, praticando um bola-gato depois da malhação!

— Bola-gato? Ah, ball-cat, boa, boa, hahaha... mas qual deles, digamos, fazia o trabalho de sopro? Hehehe... muito boa essa!

— O Barsante, claro, ah meu amigo, esse sempre teve pinta... vai por mim, homem que sabe distinguir entre fúcsia, pink, magenta e salmão... pra heteros de verdade é tudo ver-me-lho! Não tem essa de azul-royal, roxo ou violeta, é a-zul, companheiro! O devedezinho que tá circulando com o pessoal do pôquer impressiona pelo virtuosismo, um prestissimo assai como há muito tempo eu não via... se abstrairmos o fato de que quem recebe é um insigne vereador desta capital, e o outro, o perpetrador, diretor de estatal, temos de reconhecer o tocante amor à arte que ambos demonstram...

— Bem, enquanto nossos representantes públicos se fodem uns aos outros, não há problema, ruim é quando eles formam societas sceleris e se unem para nos foder. Por que é mesmo que cevamos a pão de ló esses palhaços? Mas, Rafa, voltando: você deixou mesmo de acreditar em Deus?

— A vida útil de um político... é assim, o prazo de validade dos caras vai desde a primeira denúncia até à inevitável segunda carcada, porque é nesse meio tempo que o meliante tenta compensar... bom, já que você perguntou sobre o Big Bang Boss, não é que eu tenha desacreditado, só adotei o Paradoxo de Bayle: é menos perigoso não ter nenhuma religião do que ter uma ruim. Já quanto a acreditanças ou descréditos, é o que te disse, creio no que vejo, e cada vez mais vejo as minhas próprias avantesmas.

Já ia se avizinhando a hora de se juntarem aos amigos do bridge. Pedro, pensativo, gira o gelo em seu Bourbon, absurdo contra o qual o amigo invocara sabe-se lá qual suposta oleosidade do uísque de milho que o tornava tão incompatível à água como a manga à cachaça.

— Sabe uma coisa que lembro de você, meu irmão? Aliás, acho que é por isso que você não consegue entender o verdadeiro significado do que fiz com a senhora Maeda; você é uma boa alma, Rafael.

— Deixa de bobagem, você não sabe o que está dizendo...

— Não, claro que não, lembro que você era único da nossa turma de moleques na rua, lembra disso?, lá na Casa Branca?, você era o único que não tinha estilingue pra matar passarinho. Você é um cara que há décadas mora junto e cuida da irmã da sua mãe e do irmão que nasceu com paralisia cerebral. E já me disse que vai fazer isso enquanto for vivo. Eu não era, e nem sou, como você: naturalmente bom.

Rafael lembrava — como lembrava daqueles tempos! —, com bem mais clareza que o amigo, que, ao contrário, tinha tido sim um estilingue, mas jurara a si mesmo que nunca mais usaria o que quer que fosse contra um ser mais fraco. Na verdade, os seus piores fantasmas datavam desta época. Pensou por um instante se poderia contar para Pedro que ele, o “naturalmente bom” Rafael, e o seu falecido irmão tinham abusado sexualmente do irmão mais novo, o “débil mental” como lhe chamavam. Melhor não. Há coisas que não se contam nem para o melhor amigo.

5 comentários:

José Doutel Coroado disse...

Caro Missosso,
esta "estória" demorou mas está muy bien.
Parabenizo vc.
abs

filipe com i disse...

muy bien estava aquela da beleza morena de "Um Olhar", que estória!

angela disse...

Ficou muito bom e o final...a condescendencia vem dos propios pecados inconfessaveis.

filipe com i disse...

o que não se conta nem ao melhor amigo?

mauverde disse...

Eu sei, mas não conto pra você, hauhuahauhauhuahauhauhu
(adorei a foto tesuda)