segunda-feira, 30 de agosto de 2010

domingo, 29 de agosto de 2010

a partilha



1994. Cinco anos depois da queda do Muro, a Rússia ensaia os primeiros passos no capitalismo. Dois mujiques, Fiodorenko e Pavlovich, deixaram de ser pequenos produtores rurais e tornaram-se proprietários, também pequenos.

Fiodorenko e Pavlovich eram vizinhos na aldeia de Tula, vizinha de Tobolsk, e nada possuíam, exceto uma vaca, o primeiro, e um boi, o segundo. Resolveram cruzar a vaca com boi e aumentar o rebanho.

Nascido o bezerro, a dificuldade: a quem pertence? Cheios de canjibrinas, tinguás e caipiroscas no cachaço, os dois mujiques vão às vias de fato, muito embora de fato não consigam muito estragar um ao outro devido ao pileque.

Levados à delegacia, falam ao mesmo tempo, um a argumentar que o bezerro pertence á vaca, o outro a resmonear que o boi é que tinha fidalguia e pedigree. Pavlovich tenta então uma explicação canhestra:

― Imagine o senhor delegado que eu sou o boi, e o senhor, a vaca. Lhe cubro como os bois fazem com as vacas, e nasce um bezerro. De quem é o bezerro?

Irritado com a vexatória comparação, o delegado responde furioso:

― É da puta que te pariu!

Diante da resposta, Pavlovich vira-se com ar superior para Fiodorenko:

― Conheceu papudo?, se é da minha mãe, é como se fosse meu!

eficiência operatória

um burguês nunca é completamente

crente ou ateu, diferente ou banal

o burguês é um pelintra que calcula

e sabe tirar proveito das contradições

próprias e alheias

por isso sobreviveu ideologicamente

Homo sapiens (?) sapiens (?) do capitalismo

tardio

o sujeito burguês perdeu a sombra

vendeu a alma

mas assumiu até às últimas conseqüências

a destruição como causa do devir

ele distingue e corrói tudo

que o seu desejo toca

seu gosto massificado representa o beijo da fama

e da morte para qualquer estética, moral ou filosofia

a burguesia instituiu, paradoxal e coerentemente,

a única verdadeira democracia da criação e do pensamento

(à custa dos outros)

a burguesia não é uma classe social

é um software de (auto) destruição

por meio da saturação do visível

mais civilização, mais degeneração

já que o mito do progresso acarreta

regressão aos ritos do fogo, da febre e do sacrifício

Nosso Senhor da Boa Guerra sofre

da invencível volúpia do sangue derramado

vocês não vão saber do lixo ocidental?

é

melhor

você viver

sem saber

quem você

é

a pérola e a nau

As pestanas grossas e longas delineavam-lhe as pálpebras a modo de um cajal de raios pilosos, olhos egípcios, olhos de Rá e Hórus, ainda que a beleza do rosto mais bem poderia ser comparada à melancolia extática dos ícones bizantinos. A graça desconcertante daquele corpo jovem era de uma espontaneidade primordial, violenta e incontrolada ― dispenso que me apontem as falsetas: às vezes carrego impulsivamente um desses completos desconhecidos para jantar no Leopoldo, outras, para uma temporada em casa; movimentos que me permitem transmutar uma vida materialmente confortável em períodos de intenso risco e experimentação. Abstenho-me igualmente de auto-indulgência a respeito, ao contrário, considero a turbulência um aspecto fundamental da minha atividade como crítico de arte: persigo as formas difíceis.

Caçar e ser caçado, lei da natureza que a cultura sabiamente conservou e aprimorou. No passado a caça participava duplamente do sagrado: enquanto meio de subsistência grupal e como atividade propiciatória, mágica. Instinto predador ou arte encantatória, caçar alude a uma secreta paridade entre os velhos procedimentos e a técnica, entre o Logos e o mambo-jambo, assim como inocentes rondas de poesia, de fadas e elementais podem sempre, de um momento para o outro, degenerar em carnificinas ferozmente orgíacas. Um dos mais tradicionais territórios de caça masculina nesta cidade é o Autorama do parque Ibirapuera ― lá descobri a jóia, Leandro. Convém sublinhar o adjetivo masculino: a pegação gay faz do símile heterossexual uma gincana de escoteiros; em tempos de banalidade generalizada, só nestes lúridos enclaves da testosterona me é dado reconciliar a sofisticação e o poder bravio que a humanidade ainda não esperdiçou em sua inevitável decadência.

O Autorama é um dos bolsões de estacionamento do Ibirapuera, batizado assim pelo fato de ser usado para exames de habilitação de motoristas; estrategicamente defronte à passarela que vem do DETRAN e contíguo ao Pavilhão da Bienal, na entrada número três do parque. O policiamento ostensivo e a melhora sensível da iluminação, até meia noite quando fecham os portões, facilitaram a tarefa de quem busca desde companhia até namoro; com os costumeiros opcionais variando de boquetes e punhetas a arriscadas rapidinhas nas moitas e matagais adjacentes. Em noites de gala, costumo enfiar uma pérola no cu, prometendo-a ao rude cavalheiro que a desalojar com sua lança em riste.

Como é doce o perigo de me embrenhar na vaguidão impressionista de bosques noturnos, onde o vaivém das viaturas da guarda municipal anuncia o sêmen a escorrer em olvido e dessuetude; ah, e como descrever a atoarda distante dos cavalarianos cujas patrulhas embalam epifanias de ascética abjeção? Meu reino por uma carga dessa cavalaria ligeira! Em meu benefício comparece o inegável atrativo do escândalo, o adicional de periculosidade associado ao ambiente de trabalho, uma vez que faço parte do conselho permanente de curadores da Fundação Bienal e integro a diretoria do corpo técnico do Museu de Arte Contemporânea.

Leandro, o recém-chegado, o catarinense que cansou da serraria da família, que cansou da serragem nas roupas, dos camioneiros broncos e dos viadinhos das serrarias. Leandro que foi estudar na capital, e a capital ainda não era o bastante, eu quis captar não apenas esse torso rasgado em que teus bíceps ressaltam sob a camiseta baby-look, mas o impossível, aquele fragmento mínimo em que algo existe em algum lugar para logo não mais estar ali. O instante, mais do que a continuidade temporal é a realidade ― o tempo é abstrato, embora seja percebido como real; mas só o instante é real, por ser fugidio, por sempre deixar de estar, de ser. Antes que acabassem as apresentações básicas já estávamos numa vigorosa esfregação dentro do carro, pega daqui, aperta dali, chupa ali, lambe acolá; saímos para o matinho: apoiados ao tronco de uma pata-de-vaca ordenhamos a vara um do outro, banhados no suor da febre sexual, atarrachados da cabeça aos pés.

Convidei-o para jantar no Spot, recusou, queria dançar. Fomos ao Estúdio Emme, Vegas, A Lôca, Kitsch, Hot Hot, Hell, Studio SP, D-Edge, The Week, Sonique, Mokaï, Comitê, Neu, Eazy, Club A, Cartel, Pacha, Glória, Clash, CB, ele dançava, dançava, dançava, eu pagava e bebia, pagava e bebia... Comprei uns “doces” para acompanhar o ritmo dele; e tome-lhe isotônico! Meu anjo moreno de olhos verdes, só podemos ver com a alma de outrem: podemos ver o nosso anjo, não o dos outros. Ou serão apenas aqueles providos de nervos ultrassensíveis que acessam o sortilégio incrustado no mundo material, apenas os sentidos mais atentos perceberiam as dimensões mais vibrantes, em que o céu de um azul mais transparente se afunda no abismo mais infinito, em que os sons tilintam suas cores volantins e os perfumes evocam músicas ideais?

Quis trazê-lo para a minha casa, estava louco de tesão. Preferiu um H.O.-espelunca do Centrão, fazer o quê? Lembro de tê-lo despido com carinho; libertando as bolas e a manjuba da constrição suave das cuecas boxer, admirando a grossa veia intumescida ao longo do pau, que massageei apressado em busca da chapeleta, a rosa mística que beijei com fervor profano e glutão, comovidamente genuflexo. Como era gostoso o meu michê! Que de delícias: de dois fazer um nó, fazer do exterior como o interior, e ao contrário, ir do ativo para o passivo, e vice-versa, do macho-fêmea ao macho-macho, ser mulherzinha-esposa, ser a puta e o gigolô, porque a nossa vida é um mais longo sonho e o que a morte nos leva encontra do outro lado seu complemento; ao dormir, sonhamos a vida, a vigília nada mais é que um sonho de eternidade. Apaguei.

Gatônibus. No vazio que medeia uma coisa e outra, ou que vai de uma sensação à sua antípoda, entre o ser e um estado de coisas, é que sinto o contato furtivo com afinidades submersas, sinais que prenunciam uma realidade mais esquecida e poderosa que as que conheço. Nem gato, nem ônibus, mas outra coisa que não chego a restituir em sua inteireza, já que também eu sou um vislumbre indeciso, uma forma quase rumor, um resto de amor decomposto e senil. O velho golpe do Boa-Noite-Cinderela: a cabeça pesada, a boca pastosa, a carteira leve. A pérola, ainda suja, ele deixou para trás, repousando sobre um lenço de papel ao lado do telefone. Quanto tempo terei dormido este sono sem sonhos?

Uma janela (noturna?) aberta, as venezianas fechadas, no quarto sem ninguém, o ar parado, bafiento por causa das persianas chiusas, desaconchegante penumbra cheia de interrogações e ausências. O quarto sem móveis, a não ser o esboço vago de plausíveis criados-mudos; na parede oposta à da cama onde me encontro, uma reprodução de Maxfield Parrish de criminosa feiúra; o espelho dependurado ao fundo a refletir uma luz de estanho, uma hora em que a opacidade das coisas se dissolve e todos os arranjos se tornam possíveis. Leandro vai voltar, eles sempre voltam, deve estar descobrindo as possibilidades que se abrem para um cartão platinum.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ontem fui à Bienal do Livro

Juro não consegui sabotar
Eram tantos livros bonitos e belos
Tinha Monteiro Lispector
Tinha tinha Clarice Lobato
Também tinha Jorge Coelho
E quem diria Paulo Amado

Havia as moças bonitas e exigentes...
Seriam também inteligentes?
Ora deixa pra lá, não sabia
Eu o que pensavam!
Tinham sim bonitas coxas
E lindos peitinhos

"Gente" eu vi e senti
Tanto livro e eu sem grana
Quase quase me espanto!
Tudo era muito bom
E isto me causava "gana"
Depois eu vos "conto"

Só sei que não dei bobeira
À meia-luz, ao meio-dia
Valia quase tudfo
Era Book digital
Que até sonhei Melodia
Êta cultura banal;
Muito Muito cuidado
com o anal...

Libni Gerson
22/08/10

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Survival of the Sickest

Antes de ficar doente, eu era uma garota de dezesseis anos igual a todas as outras que conhecia. Então me mandaram para “casa”. Quer dizer, o que fizeram foi me jogar tipo num lar de idosos onde mora o meu pai, meu avô, minha avó, minha tia e o marido dela.

― Você pode ficar com o quarto que era do seu... ham, irmão, bem, você entendeu?...

“Irmão”. Quanta cara de pau. Só faltava dizerem “seu irmãozinho gêmeo”. A capacidade que esses velhos de merda têm de soltar abobrinhas deste naipe me deixa desesperada ― mentem sem nem piscar! ―, meu pai, então, é o rei do óleo de peroba facial neste asilo.

Anotação importante: PRECISO aprender a falar como eles.

― A lista de obrigações domésticas está sobre a sua mesa. Seria conveniente também que você arrumasse um trabalho.

E assim fui amavelmente introduzida pela minha avó a uma rotina de tédio e tarefas sem sentido. Parte do dia fico de criada dos dinossauros e na outra vou para uma sala cheia de idiotas onde passo horas com o corpo imobilizado numa cadeira. Dizem-me que ainda tenho muito a aprender.

Já tinham me falado que a Zumbilândia era esquisita, mas não dava para imaginar o quanto. Outra anotação: adultos são pessoas que levam uma vida bagaceira e que acham a maior graça em freqüentar espetáculos em que lhes contam que a vida deles é sem graça.

Todo mês tenho de ir fazer exames, receber tratamento e essas coisas; daí que me scaneiam um dia inteiro naquelas máquinas escrotas e sequer me dispensam do trabalho no dia seguinte. Minha tia e minha avó metem o bedelho no meu tratamento ― são tão interessadas na minha saúde! Sei bem o que querem as duas biscatas.

Dizem que nunca foi, mas não tem sido fácil ser jovem neste começo do século XXII. A vida melhorou, mas... para pior. As pessoas hoje vivem quanto querem, a tecnologia permite alongar a vida para sempre, ou quase, porque esses hipócritas ainda não conseguiram abolir o acaso. Ainda se morre e nasce por acidente.

Foi um acidente aéreo que matou meu “irmão”. Ocupo o quarto dele, durmo na cama que foi dele, uso até algumas roupas unissex que lhe pertenceram. O pouco que tenho foi dele. Diagnosticaram em mim um câncer de medula, leucemia mielóide crônica, que costuma ser bem agressiva em adolescentes. Isso eu tenho e ele nunca teve.

― Não queremos saber dos péssimos hábitos que a senhorita adquiriu na Escola, nesta casa não se fuma e acabou ― o mala sem alças do encostado que come a minha tia me dá lições de moral; na real, todos os panacas desta casa me passam sermão a respeito de tudo. Vou me candidatar ao troféu saco de ouro. Haja.

Por estranho que pareça, aproveito para fumar nos dias que vou ao hospital: é o momento em que a vigilância sobre mim fica mais frouxa. Agradeço todos os dias aos meus cromossomos 9 e 12 que trocaram pedaços entre si e passaram a produzir uma proteína que acelera a divisão celular e impede reparos no DNA. Resultado: câncer.

Mais uma para o meu caderninho de vômitos íntimos: só estou viva porque posso morrer a qualquer hora.

Os rebeldes do corpo são as células cancerosas; primeiro, elas se locomovem, as células vizinhas tentam inibi-las, mas elas continuam a se deslocar; segundo, crescem, devido a falhas nos fatores que as impediriam; terceiro, elas se dividem para sempre. No xadrez dos órgãos, câncer é quando os peões recusam o sacrifício.

Pós-humanos, estes babacas da Zumbilândia se consideram pós-humanos! Pós-de-traque é o que são. Estão sempre falando de como são incríveis, das coisas geniais que fizeram e as pessoas ma-ra-vi-lho-sas que freqüentam. Por isso é que lá na Escola nós os chamamos de mortos-vivos.

A Escola é o único lugar onde se vive à vera. Mas acaba um dia, quando fazemos 20 anos. Lá estamos vivos, cercados de gente que está acontecendo, brincando, aprendendo, amando, criando. Os cyborgues aqui fora não fazem nada disso, estão por demais intoxicados de si mesmos.

O que não nos dizem na Escola é o que vai acontecer com a maioria de nós. Vim de uma unidade especial, a H.A.C.: sou um produto do programa Human Advanced Cloning, nos auto-batizamos de hacs. Somos cobaias de deuses sebosos, “portadores de peças de reposição” para esses malditos imortais. Carne de abate.

― Como é possível que você não melhore nem com mais moderna terapia gênica, querida? ― fofa que nem a bruxa de João e Maria, minha vó.

Vovó e titia já estariam “usando” vários partes de mim se eu não tivesse caído doente; elas não se conformam. Vejo como elas me cercam nos corredores, me apalpam com os olhos quando saio do banho, fofocam entre si dizendo que estou anêmica, febril, sempre cansada; um pé no saco delas, essa doença.

Tive um professor que disse que éramos os novos proletários. Mais uma das meias-verdades de que tanto gostam; na verdade, me sinto pior de que uma escrava, aliás, trabalho que nem uma no Manicômio Arkham que é a porra do meu “lar”.

Nota: não confie em ninguém com mais de cem.

Apoptose. A medicina dominou o envelhecimento há um bom tempo já, descobriram o “relógio do DNA”: na ponta das fitas dos cromossomos há uma série de bases repetidas, o telômero; a cada divisão, a célula perde 200 dessas bases, até que fica incapacitada de se recodificar e morre. Tiraram a tesoura da mão das Parcas.

O ser humano tem 27.000 genes, a combinação entre eles é da ordem de 3 bilhões elevado ao quadrado, o que torna a chance de repetição de um genoma uma possibilidade praticamente nula. 99,8 % do material genético é comum a todas as pessoas, mas esses 0,2 % codificam 6 milhões de diferenças cuja combinação permite moldar indivíduos muito singulares.

Os hacs somos mais frágeis, temos maior tendência a desenvolver tumores, lesões no fígado e artrite, envelhecemos rápido, temos a imunidade bem baixa ― estamos sempre infectados por alguma coisa. Ainda crianças, a gente saca o que vem pela frente (crianças não são burras), sabemos que só vão sobreviver aqueles que fizerem alguma descoberta científica, uma obra de arte importante, qualquer coisa que sirva ao mundo louco dos adultos. Eu não tinha nenhum dom especial.

Até que descobri que “sabia” ficar doente. Já tive outros tumores em células-tronco, no timo, no baço; o meu corpo não quer ficar adulto. Parece que sabe o que o aguarda. Enquanto estiver doente, estou salva. Seja como for, já me decidi: nunca vou ser como eles.


(plágiomenagemàtrois a Henri Michaux e Kazuo Ishiguro)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

ORDÁLIO

na verdade o poema me dói
quando vem
lacerando dentro
& fora

nascido de muitíssimas mães
navegando
por uma escura casa
de um canto
ainda mais obscuro
uma certa época
em que fui profundamente
infeliz

às vezes
um abandono doloroso
ou
um peso insuportável
mas a cada vez
e sempre:
um exorcismo

querer escapar
do mundo
é traduzi
lo

na verdade o poema vem
de um lugar sujo
& virgem
da minha
alma

um outro eu
mau
de uma violência grandiosa
demoníaca

cravando
os dentes na vida
e quando ele começa a falar
nos diz que foi
enjeitado

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Inominável


Do prazer tirou a alegria

o belo transformou em feio

a inocência virou pecado

a alma leve que brincava

escondeu-se


aniquilou-me

em pedaços me partiu

multiplicada em mil

em cada pequeno fragmento

a dor inteira ficou


naqueles que atiraram a pedra

o terror penetrou

a crueldade se alojou

a vingança primitiva

acordou

ecoou

e

ruge

urge

clama

suplica

por mais suplicio.


e aquilo que um dia foi alegria

escondido

disfarçado

transformado

em sórdidos desejos

secretamente

silenciosamente

covardemente

goza




1 - As primeiras leis que tentaram reger a vida social é o conhecido Código de Hamurabi a lei do talião, que significa "tal e qual". Olho por olho, dente por dente. É um conjunto de regras com as punições correspondentes a suas infrações. Apesar de seus quase 4000 anos e terem suas origens na mesma região é em muitos aspectos mais tolerante que a atual,

Condena-se a morte adúlteros e homossexuais.



(foto retirada do Google-Código de Hamurabi)





domingo, 15 de agosto de 2010

Outros Tempos

Sua idade era indefinida, para as crianças só existem três idades, a delas, a dos adultos e a dos velhos. Então para elas ele era um adulto e elas tinham certo receio dele.

Na pequena cidade de ruas largas e arborizadas as crianças corriam soltas, os carros eram poucos e os perigos passavam longe. Seus medos ficavam por conta das histórias de assombrações, dos castigos dos pais, das ameaças do padre e claro, da imaginação deles próprios.

Era nesta ultima categoria que entrava a figura do barbeiro da cidade. Um homem magro de meia idade, estatura mediana, cabelo preto penteado para trás melado de brilhantina, não saia um fio do lugar, só saiam em mechas, bigodinho fino bem aparado. Vestia-se sempre de calça preta social e camisa de manga comprida branca, apesar do calor que lá fazia. Uma roupa surrada, mas bem lavada e bem passada, tinha uma maleta preta onde carregava seus instrumentos quando ia atender algum cliente na residência. Até aí era como muitos, mas a unha do dedo mindinho... Era onde residia o inusitado, era grande, muito grande, maior que a das mulheres. Uma única unha grande e este detalhe causava todo o temor e atiçava a imaginação.

Não entendiam como os pais iam à barbearia e ficavam por lá folheando revistas, conversando e rindo e os rapazes também gostavam. Parecia que tinha um feitiço que tendo entrado uma vez voltariam toda semana. Os meninos prometiam entre si que nunca iriam por os pés naquele lugar, mas ardiam de curiosidade e assim foi por muitos anos. Quando a barba ficava espessa o pai levava o filho à barbearia e o pronto. Acontecia de novo.

Os tempos mudaram as revistas de nu feminino começaram a ser vendidas na banca, falava-se de sexo mais livremente e o feitiço da barbearia acabou.


(foto retirada do Google-Capa da Primeira Playboy- 1953-Marilyn Monroe)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

ressurreição

Sim, houve um tempo em que uma mulher podia se chamar Odete ― e isto sem prejuízo da sua vida amorosa e sem bullying na escola ―; havia, como hoje ainda há, embora menos, aquela mania de usar a mesma letra para dar nome a todos os filhos. Outros tempos, outros costumes. E também a quantidade de filhos era outra, por exemplo, Dna. Odete, católica apostólica e romana, moradora da Vila Maria, eleitora do Adhemar, do Jânio, do Maluf, do Cunha Bueno e do Collor, era a terceira de cinco irmãos: Oldemário, Olinda, Odete, Onésimo e Onilda. Ninguém merece.

Dna. Nicinha, mãe de Dna. Odete, nasceu, viveu, casou, teve seus cinco filhos em casa e findou seus dias sem nunca ter saído de Brumadinho. Mesmo antes de enviuvar, Dna. Nicinha já criava uma gataria numerosa no pied-à-terre onde passou toda a sua vida de casada. Olinda e Onésimo, que moravam com a mãe, decidiram livrar-se do gatil depois que Deus a levou em Seus braços. Dna. Odete ficou com o Tareco, um macho cinza-almiscarado, caçador e benquisto entre as bichanas da região. Devidamente capado, tratado e gorducho, Tareco se adaptou à maravilha ao ritmo paulistano.

O mundo gira e a Lusitana roda, passam-se os anos e Dna. Odete volta a Brumadinho com o Tareco na gaiolinha. Despachado por avião, assim como a dona, lá se vão eles para um reencontro familiar; a viagem não é curta: avião até Belo Horizonte e ônibus ou van por mais cento e tal quilômetros de uma estradinha nervosa. Ao desembarcar as bagagens, um funcionário do Aeroporto da Pampulha se apercebe da tragédia: o gato está morto dentro da gaiola. Pânico no setor de cargas, chamam a supervisora da companhia aérea que constata o óbvio e se instala o impasse.

Alguém se lembra do Odilon, o encarregado dos depósitos, que, como ele mesmo se auto-define, é o “fazedor de zero a tudo”; o encarregado tinha fama de criar uns gatos na região dos hangares. Odilon traz um gato igualzinho ao falecido felino pelo cangote, o bicho a arranhar, rebusnar e regougar como um louco, e o enfia na gaiola. Problema resolvido. A supervisora retorna para o balcão da companhia a tempo de assistir a Dna. Odete desmaiar na esteira das bagagens. Mais corre-corre, a rechonchuda senhora é levada às pressas para a enfermaria do aeroporto.

Durante o vôo Dna. Odete sonhara que encontrava a mãe no jardim da casa em Brumadinho; chamava-a, mas ela não lhe dava atenção, continuava a cuidar dos gatos. Um deles, o Tareco, levanta o focinho do pires e ... sorri! Meio litro de soro e um eletrocardiograma depois, Dna. Odete, omitindo esta parte, conseguiu explicar entre lágrimas:

― Virgem Santíssima, que susto, de repente, tava lá o Tareco vivo! Ele tinha morrido e eu ia levar para enterrar o bichinho na casa de minha mãe, como prometi a ela no leito de morte... No vôo sonhei com ele e aí eu olho, e ele tá vivinho da silva, pelas alminhas, alguém me explique?...

Dna. Nicinha se preocupava muito com o futuro dos seus bichos de estimação. Apesar de idosa e doente, percebia a jiriza renhida de Olinda contra eles, assim que tratou pessoalmente da adoção de cada um, instruindo até sobre os cuidados póstumos. Um milagre acontecera, a notícia se espalhou pelo saguão do aeroporto. Malandro é o gato: como lucro da romaria que se formou em frente à enfermaria, o gatarrão do Odilon se entupiu com a ração que uma alma caridosa lhe trouxe.

sábado, 7 de agosto de 2010

O Pássaro que Dança


Um deus antigo, um anjo
Levita
Volteia
Rodopia
Hipnotiza
Em sua perfeição
Eleva
Enleva
Encanta
A sua dança leva
Uma estrela
Que pousa no coração.


Postagem conjunta com Ricardo do bloghttp://tertulhas.blogspot.com/

Quando Baryshnikov recebeu a medalha de ouro do Kirov na Competição Internacional de Ballet em Moscou em 1969, Maya Plissetskaya, que estava no juri deu-lhe 13 pontos dos possíveis 12...



quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Que sejam


Que sejam palavras bem ditas
benditas
iluminadas


que seduzem
enternecem
alegrem


que sejam
claras
sensatas
sábias



o verbo
a rima
o verso
o inverso


que sejam palavras mal ditas
malditas
que entristecem
inquietam
enraivecem


que sejam
obscuras
equívocos
eco
ressonância


que sejam
palavras



do seu silêncio
são feitos meus ruídos






( Edward Hopper - room in- New York - Google)



quarta-feira, 4 de agosto de 2010

À Roberto Piva



O poeta é um feiticeiro
um xamã que inventou


palavras

Com a mão direita
significa o amor
a vida

A despeito dos anjos de Sodoma

Absorve o pecado
dignifica
a loucura

Com a mão esquerda
fecha o caderno
une as mãos

Transmuta-se em arco-íris

(foto Google)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Parceria

Parceria fruto desse blog: Mauverde canta Missosso


Foi nos anos 20 que as estruturas abertas se liberaram. Asfixiadas na 2ª guerra, escaparam do cerco nos anos 60 e se espalharam pelo mundo. Dada a capacidade de nadar de braçadas sobre as lutas de classe e também sobre os templates educativos, intelectuais, artistas, governantes bacaninhas namoraram estas estruturas na segunda metade do século, mantendo sempre uma distância “saudável”. Por exemplo, um teatro construído desta forma, podia se manter aberto e permeável à visitação dos curiosos, contando que estes não ousassem subverter as diretrizes do petit comite!
Em pouco tempo de compartilhamento, a internet, onde qualquer um entra no grupo e fala as groselhas que lhe vêm à telha, produz desconcerto e sensação de desabamento da ordem do mundo.
As estruturas abertas já estavam por aí, mas desaparecidas não incomodavam.

domingo, 1 de agosto de 2010

o homem que atrasava

― “... no inverno de 1913, dois meses depois de conhecê-lo, Anna vai procurar Aleksandr em sua casa...” ― Luna repassava com ele capítulos inteiros da sua tese de doutoramento em letras russas.

― Essa mulher está de xale negro em todas as fotos ― Bartô queria era dizer que aquela poeta transformara a vida sexual deles numa prosa insípida.

― Mas também... ela foi proibida pelo pai de usar o sobrenome dele, teve o primeiro marido fuzilado pela Revolução, o terceiro morto num campo de concentração, o filho preso...

― “Não sou tão terrível que ingenuamente possa matar; e nem tão ingênua...” ― as coisas lhe corriam bem na corretora, moravam numa cobertura, mas a mulher não saía do computador nos últimos meses.

― “... que não saiba como a vida é terrível”, você já decorou... ― andava preocupada com os atrasos dele, sentia a culpa aguilhoá-la a cada vez que o via levar o jantar esquentado no miroondas para a sala de TV sozinho.

***

― “Quem se encontrou com quem, quando e por quê” ― toda vestida e pintada, o chinelo de feltro.

― “...quem morreu e quem sobreviveu e quem é o autor, quem o herói” ― Bartô não conseguia ver mais nada; aquele corpo de bem mais de uma centena de quilos revelou uma nesga de coxa branquicenta, fios de veias azuladas desciam para a panturrilha.

― “... e que necessidade temos, hoje, desse discurso sobre um poeta” ― arrepanhou o tutu da saia como se fosse dar um passo de dança. Desde que ficou claro que além do sexo não tinham outro assunto, falavam assim, recitando.

― “... e um enxame de fantasmas?” ― desolado, deixou-se cair no sofá. Dois meses depois de a ajudar a carregar as compras na garagem, tinha ido ao apartamento dela para tomar o café prometido. O café pelava de tão quente.

― “Ninguém bate à minha porta, o Silêncio mantém silêncio” ― preparou dois drinques e os trouxe para mesinha de centro. Notou que ele ainda não relaxara.

― “... e o espelho sonha apenas com o espelho” ― ela sentou ao seu lado. Sentia-lhe o perfume cálido das carnes graxudas, a massa de ser o envolvia com o balanço nutrido dos seus fluxos e refluxos incontidos. Já na primeira vez que foi lá se atracaram.

― “Hoje, tenho muito o que fazer: devo matar a memória até o fim” ― foi até o quarto, voltou só com o roupão entreaberto deixando adivinhar a lingerie vermelha comprimida sob a enxúndia. Havia pouco tempo; ele logo teria de ir para casa, no bloco B do mesmo condomínio. Não sabiam o nome um do outro.

― “Minha alma vai ter de virar pedra, terei de reaprender a viver” ― saía mais cedo do escritório para trepar com a sua vênus esteatopígia no final de tarde. Quando ela lhe pediu que conversassem sobre alguma coisa, ele só conseguiu repetir os versos da outra. A vizinha se apaixonou imediatamente pela poesia de Anna Akhmátova; só se falavam por meio dela. Bebeu de uma talagada.

― “Mas um sonho é também algo de real” ― caminhou na direção do quarto, parou recostada ao batente ocupando toda a porta. Soltou os cabelos presos a um lenço de seda. Agarrou-a por trás, falto de a poder abarcar por inteiro. Ela rinchava rouca égua selvagem, sucuri lesa no banhado.

― “O mistério de um não-encontro tem desolados triunfos” ― deu-lhe beijos melados, mordiscou-lhe a saboneteira, a barbela e os três queixos, titilou a orelha miúda, lambe-lambendo os bicos das mamas suntuosas enquanto arrancava o paletó e os sapatos aos tropicões.

― “Frases não ditas, palavras mudas, olhares silenciados” ― a calcinha apertada ela deslizou sobre as coxas rubicundas; o chorume orgânico do seu unto de foca se misturava a ele, que se debatia agoniado embaixo dela na cama queen size.

― “Tu me inventaste, não há um ser assim e nem poderia um ser assim haver” ― o empuxo da matéria pingue o arrastava para as profundezas de um pesadelo gozoso; delirava ao léu por mares de delícias gelatinosas, seu pau e sua alma sugados pelo úbere da mãe d’água suspirosa e gordã.

― “E a tudo isso chamaremos de amor imortal” ― ela sempre soube que ele voltaria para a mulher, não se enganava, mas ainda queria acreditar que se encontrariam num futuro inacreditável quando as forças do mundo se esgotarem.

***

― Meu bem, tenho uma notícia maravilhosa: marcaram a data da defesa! ― Luna viu quando o rosto dele faiscou de desejo; ficou encabulada com o olhar que a percorreu de cima a baixo. Tinha engordado nos últimos meses.