As pestanas grossas e longas delineavam-lhe as pálpebras a modo de um cajal de raios pilosos, olhos egípcios, olhos de Rá e Hórus, ainda que a beleza do rosto mais bem poderia ser comparada à melancolia extática dos ícones bizantinos. A graça desconcertante daquele corpo jovem era de uma espontaneidade primordial, violenta e incontrolada ― dispenso que me apontem as falsetas: às vezes carrego impulsivamente um desses completos desconhecidos para jantar no Leopoldo, outras, para uma temporada em casa; movimentos que me permitem transmutar uma vida materialmente confortável em períodos de intenso risco e experimentação. Abstenho-me igualmente de auto-indulgência a respeito, ao contrário, considero a turbulência um aspecto fundamental da minha atividade como crítico de arte: persigo as formas difíceis.
Caçar e ser caçado, lei da natureza que a cultura sabiamente conservou e aprimorou. No passado a caça participava duplamente do sagrado: enquanto meio de subsistência grupal e como atividade propiciatória, mágica. Instinto predador ou arte encantatória, caçar alude a uma secreta paridade entre os velhos procedimentos e a técnica, entre o Logos e o mambo-jambo, assim como inocentes rondas de poesia, de fadas e elementais podem sempre, de um momento para o outro, degenerar em carnificinas ferozmente orgíacas. Um dos mais tradicionais territórios de caça masculina nesta cidade é o Autorama do parque Ibirapuera ― lá descobri a jóia, Leandro. Convém sublinhar o adjetivo masculino: a pegação gay faz do símile heterossexual uma gincana de escoteiros; em tempos de banalidade generalizada, só nestes lúridos enclaves da testosterona me é dado reconciliar a sofisticação e o poder bravio que a humanidade ainda não esperdiçou em sua inevitável decadência.
O Autorama é um dos bolsões de estacionamento do Ibirapuera, batizado assim pelo fato de ser usado para exames de habilitação de motoristas; estrategicamente defronte à passarela que vem do DETRAN e contíguo ao Pavilhão da Bienal, na entrada número três do parque. O policiamento ostensivo e a melhora sensível da iluminação, até meia noite quando fecham os portões, facilitaram a tarefa de quem busca desde companhia até namoro; com os costumeiros opcionais variando de boquetes e punhetas a arriscadas rapidinhas nas moitas e matagais adjacentes. Em noites de gala, costumo enfiar uma pérola no cu, prometendo-a ao rude cavalheiro que a desalojar com sua lança em riste.
Como é doce o perigo de me embrenhar na vaguidão impressionista de bosques noturnos, onde o vaivém das viaturas da guarda municipal anuncia o sêmen a escorrer em olvido e dessuetude; ah, e como descrever a atoarda distante dos cavalarianos cujas patrulhas embalam epifanias de ascética abjeção? Meu reino por uma carga dessa cavalaria ligeira! Em meu benefício comparece o inegável atrativo do escândalo, o adicional de periculosidade associado ao ambiente de trabalho, uma vez que faço parte do conselho permanente de curadores da Fundação Bienal e integro a diretoria do corpo técnico do Museu de Arte Contemporânea.
Leandro, o recém-chegado, o catarinense que cansou da serraria da família, que cansou da serragem nas roupas, dos camioneiros broncos e dos viadinhos das serrarias. Leandro que foi estudar na capital, e a capital ainda não era o bastante, eu quis captar não apenas esse torso rasgado em que teus bíceps ressaltam sob a camiseta baby-look, mas o impossível, aquele fragmento mínimo em que algo existe em algum lugar para logo não mais estar ali. O instante, mais do que a continuidade temporal é a realidade ― o tempo é abstrato, embora seja percebido como real; mas só o instante é real, por ser fugidio, por sempre deixar de estar, de ser. Antes que acabassem as apresentações básicas já estávamos numa vigorosa esfregação dentro do carro, pega daqui, aperta dali, chupa ali, lambe acolá; saímos para o matinho: apoiados ao tronco de uma pata-de-vaca ordenhamos a vara um do outro, banhados no suor da febre sexual, atarrachados da cabeça aos pés.
Convidei-o para jantar no Spot, recusou, queria dançar. Fomos ao Estúdio Emme, Vegas, A Lôca, Kitsch, Hot Hot, Hell, Studio SP, D-Edge, The Week, Sonique, Mokaï, Comitê, Neu, Eazy, Club A, Cartel, Pacha, Glória, Clash, CB, ele dançava, dançava, dançava, eu pagava e bebia, pagava e bebia... Comprei uns “doces” para acompanhar o ritmo dele; e tome-lhe isotônico! Meu anjo moreno de olhos verdes, só podemos ver com a alma de outrem: podemos ver o nosso anjo, não o dos outros. Ou serão apenas aqueles providos de nervos ultrassensíveis que acessam o sortilégio incrustado no mundo material, apenas os sentidos mais atentos perceberiam as dimensões mais vibrantes, em que o céu de um azul mais transparente se afunda no abismo mais infinito, em que os sons tilintam suas cores volantins e os perfumes evocam músicas ideais?
Quis trazê-lo para a minha casa, estava louco de tesão. Preferiu um H.O.-espelunca do Centrão, fazer o quê? Lembro de tê-lo despido com carinho; libertando as bolas e a manjuba da constrição suave das cuecas boxer, admirando a grossa veia intumescida ao longo do pau, que massageei apressado em busca da chapeleta, a rosa mística que beijei com fervor profano e glutão, comovidamente genuflexo. Como era gostoso o meu michê! Que de delícias: de dois fazer um nó, fazer do exterior como o interior, e ao contrário, ir do ativo para o passivo, e vice-versa, do macho-fêmea ao macho-macho, ser mulherzinha-esposa, ser a puta e o gigolô, porque a nossa vida é um mais longo sonho e o que a morte nos leva encontra do outro lado seu complemento; ao dormir, sonhamos a vida, a vigília nada mais é que um sonho de eternidade. Apaguei.
Gatônibus. No vazio que medeia uma coisa e outra, ou que vai de uma sensação à sua antípoda, entre o ser e um estado de coisas, é que sinto o contato furtivo com afinidades submersas, sinais que prenunciam uma realidade mais esquecida e poderosa que as que conheço. Nem gato, nem ônibus, mas outra coisa que não chego a restituir em sua inteireza, já que também eu sou um vislumbre indeciso, uma forma quase rumor, um resto de amor decomposto e senil. O velho golpe do Boa-Noite-Cinderela: a cabeça pesada, a boca pastosa, a carteira leve. A pérola, ainda suja, ele deixou para trás, repousando sobre um lenço de papel ao lado do telefone. Quanto tempo terei dormido este sono sem sonhos?
Uma janela (noturna?) aberta, as venezianas fechadas, no quarto sem ninguém, o ar parado, bafiento por causa das persianas chiusas, desaconchegante penumbra cheia de interrogações e ausências. O quarto sem móveis, a não ser o esboço vago de plausíveis criados-mudos; na parede oposta à da cama onde me encontro, uma reprodução de Maxfield Parrish de criminosa feiúra; o espelho dependurado ao fundo a refletir uma luz de estanho, uma hora em que a opacidade das coisas se dissolve e todos os arranjos se tornam possíveis. Leandro vai voltar, eles sempre voltam, deve estar descobrindo as possibilidades que se abrem para um cartão platinum.
4 comentários:
Caro Missosso,
bela "estória"...
bem contada, credível...
e com um final mais que adequado a essa realidade.
felicitações pela produção
abs
Odeio os detalhes sórdidos, gineco-urológicos, devo admitir. Mas te cumprimento e ovaciono pelo mergulho na alma do sujeito. Ora ora ora... ia me esquecendo que isso é parte do teu metiê!
Escreve com palavras bonitas (quase sempre) pensamentos bem vulgares. Afinal o personagem é um homem culto e sofisticado na superfície. Uma ficção e tanto.
tks amigos, por me acompanharem em mais este mergulho, só vou completar o pensamento de Ângela: ser culto e sofisticado já é uma forma de perversão inaudita.
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