― Secretário... sente-se por favor, fizemos uma edição dos vídeos da menina, hãm... são os trechos mais... polêmicos, os mais sensíveis, por assim dizer, para um dos carros-chefe do governador: a reformulação da Secretaria do Menor...
― Caralho Proença, o governador me comendo o rabo, essa bosta de vídeo bombando no twitter, a reeleição em primeiro turno perigando, como é que você acha que o homem tá, hem? Quem pôs banda larga nessa porra de abrigo?
― Foi uma doação dos rotarianos do bairro... as crianças é que criaram a conta, bem... já tiramos tudo do ar, o problema são os virais rolando nas redes sociais...
― Rede social de cu é rola, Proença!... Um puta estrago desses na reta final da campanha! Vamos ter que achar nessa merda daí uma saída, mandar para o marqueteiro da campanha aprovar... O governador tem coletiva de imprensa logo mais à noite, que cacete!
― Bem, vamos assistir neste aparelho... ah, não se preocupe, a sala passou por varredura...
∞
“A Daiane dá saltos bem altos, eu sou a Daiane dançando, levanto a perna, requebro, dou pulos e cambotas, fazendo piruetas pelo ar e o mundo todo aplaudindo de olhos arregalados; ela é a menina mais bonita do mundo porque ela não é só uma campeã olímpica, porque ela é também Miss Universo, a mais linda de todo sempre; então, quando ela já ganhou a medalha de ouro mais o prêmio de um milhão de dólares, ela vai dar o maior de todos os saltos mortais de todos os tempos, a platéia fica com medo do que vai acontecer, ran-tan-tan-tan, são os tambores tocando no maior estádio do mundo, que nem no circo, e a Daiane voa muito alto, tão alto que ninguém sabe como ela vai descer, e então vem um menino muito bonito, igual aquele do “Esqueceram de Mim”, e pega ela voando e leva ela no trapézio para junto do pai e da mãe dele, que são também os donos do circo, e eu vou junto com eles viajando pelo mundo afora, deixando as pessoas muito admiradas na Europa e em Nova Iorque. Nós somos muito felizes e famosos em Hollywood também.”
“Agora, voltei a me chamar Rayane, que é meu nome de verdade; é que antes mudaram meu nome para Maria Eugênia, um nome feio e de gente velha, tenho 9 anos e estou no segundo ano do fundamental, não gostei que mudaram meu nome, também não achei bom quando me levaram, prefiro morar aqui: já conheço os monitores, a tia Neide da cozinha, as coordenadoras, o diretor; prefiro morar no abrigo, todos os meus amigos são daqui, do Abrigo Geneton Ilaci. A gente vem pra cá quando deixa de ser criancinha-bebê, daí ninguém mais quer adotar nós e falam pra gente que agora nossa família é o abrigo, só vamos sair quando ficar de maior; outra coisa que falam é que quem faz coisa que não deve vai parar na Fundação Casa, a FEBEM, lá é muito podreira, só tem meninos bem ruins que apanham muito dos monitores. A gente chama mesmo é de Fundação Casa do Capeta. Eu estou no Geneton porque meus pais morreram queimados no barraco onde a gente morava; o Elias, um menino mais velho, morava lá também na favela do Jaguaré e disse que os ricos quando vão fazer os condomínios deles mandam queimar as casas dos pobres. O Elias perdeu a mãe nesse incêndio, do pai ele nunca soube.”
“Tem uns tio bonzinho que sempre aparecem no Dia das Crianças e no Natal, eles dá presente pra nós; foram eles que botaram computador e agora tem Cartoon e Discovery Kids na nossa TV, mas os monitores só deixam a gente ver 2 horas por dia, eles são muito chatos, eles tá sempre dizendo: ‘tem coisa que pode e tem coisa que não pode’. Não pode é o que eles mais falam; criança não pode quase nada, mas eles fica assistindo filme a noite toda, que eu sei. O que eu mais gosto de ver no Cartoon é a Mansão Foster para Amigos Imaginários, a mansão é que nem o Geneton, o senhor Coelho e a Madame Foster recolhem os amigos imaginários quando as crianças abandonam eles ― nunca que eu vou abandonar a Daiane, ela é a minha melhor amiga. Lá na escola, as outra menina me zoa, elas não brinca comigo no recreio, nem convida para as festa delas; na escola tem os ‘populares’ e o resto, quem não é popular chamam de ‘os FEBEM’, mesmo que não seja do abrigo. Só não dizem na cara porque têm medo de apanhar, têm medo de nós, como se a gente fosse tudo bandido; as meninas da minha classe só me dão tchauzinho na saída, quando os pais buscam elas e eu estou entrando na perua do Geneton. Fazem só pra chatear, como dizendo: ‘agora eu vou pra minha casa, e você?’”
“Alguns meninos e meninas daqui tem mãe na prisão, todos sonham que ela vai voltar e tirar eles daqui; a mulher que me levou, Dona Mércia, disse que ia me levar para morar num apartamento grande, me chamava de filha, e que ia ter um quarto só pra mim e até ia ganhar um Gameboy; acreditei nela, todo mundo dizia que era uma chance na vida. Mas não foi nada do que ela falou, ela e só reclamava comigo: que não como direito, que não arrumo o quarto, até me levaram numa pissicóloga para ela tirar a Daiane de mim. Essa bruxa tava sempre gritando, me chamando de louca, dizia que eu não podia ficar falando sozinha, que fazia xixi na cama toda hora ― isso é vida? Daí que eu penso na história de ter uma chance, eu já tive uma chance na vida: ninguém sabe como não morri queimada junto com meus pais, se eu fosse a Daiane acho que eu tinha salvado eles; fico triste quando penso nisso, fico triste também porque aquela mulher mudou meu nome e botou o da mãe dela que tinha morrido. É ruim ser devolvida, parece que fui eu que aprontei e que não sirvo pra ninguém. Por isso que gosto tanto de ver a Daiane dos Santos na TV, ela é tão dez!, ela é uma campeã de verdade, admiro muito ela porque ela continua, dá aquele tuíste carpado mesmo sentindo dor.”
Os adultos só mandam, mandam em tudo, mandam nas coisa e nas palavra, por exemplo, quando a gente faz merda aqui no Geneton, primeiro os monitores dão bronca e depois vem o diretor e dá um castigo de verdade. Ser criança é difícil por causa dos adultos, ser criança demora muito; aprendi que primeiro a gente precisa saber quem manda nas coisas, para depois fingir que acredita no que dizem. Na escola nunca falam: ‘você está de castigo’, mas você está, fica fora da classe sem poder brincar, só esperando a aula acabar; você tá de castigo, mas eles dizem que não é bem assim. O problema de gente grande é que eles é só grande, não é melhor que nós, os pequeno, a gente vira grande quando esquece como é ser criança.”
― Caralho Proença, o governador me comendo o rabo, essa bosta de vídeo bombando no twitter, a reeleição em primeiro turno perigando, como é que você acha que o homem tá, hem? Quem pôs banda larga nessa porra de abrigo?
― Foi uma doação dos rotarianos do bairro... as crianças é que criaram a conta, bem... já tiramos tudo do ar, o problema são os virais rolando nas redes sociais...
― Rede social de cu é rola, Proença!... Um puta estrago desses na reta final da campanha! Vamos ter que achar nessa merda daí uma saída, mandar para o marqueteiro da campanha aprovar... O governador tem coletiva de imprensa logo mais à noite, que cacete!
― Bem, vamos assistir neste aparelho... ah, não se preocupe, a sala passou por varredura...
∞
“A Daiane dá saltos bem altos, eu sou a Daiane dançando, levanto a perna, requebro, dou pulos e cambotas, fazendo piruetas pelo ar e o mundo todo aplaudindo de olhos arregalados; ela é a menina mais bonita do mundo porque ela não é só uma campeã olímpica, porque ela é também Miss Universo, a mais linda de todo sempre; então, quando ela já ganhou a medalha de ouro mais o prêmio de um milhão de dólares, ela vai dar o maior de todos os saltos mortais de todos os tempos, a platéia fica com medo do que vai acontecer, ran-tan-tan-tan, são os tambores tocando no maior estádio do mundo, que nem no circo, e a Daiane voa muito alto, tão alto que ninguém sabe como ela vai descer, e então vem um menino muito bonito, igual aquele do “Esqueceram de Mim”, e pega ela voando e leva ela no trapézio para junto do pai e da mãe dele, que são também os donos do circo, e eu vou junto com eles viajando pelo mundo afora, deixando as pessoas muito admiradas na Europa e em Nova Iorque. Nós somos muito felizes e famosos em Hollywood também.”
“Agora, voltei a me chamar Rayane, que é meu nome de verdade; é que antes mudaram meu nome para Maria Eugênia, um nome feio e de gente velha, tenho 9 anos e estou no segundo ano do fundamental, não gostei que mudaram meu nome, também não achei bom quando me levaram, prefiro morar aqui: já conheço os monitores, a tia Neide da cozinha, as coordenadoras, o diretor; prefiro morar no abrigo, todos os meus amigos são daqui, do Abrigo Geneton Ilaci. A gente vem pra cá quando deixa de ser criancinha-bebê, daí ninguém mais quer adotar nós e falam pra gente que agora nossa família é o abrigo, só vamos sair quando ficar de maior; outra coisa que falam é que quem faz coisa que não deve vai parar na Fundação Casa, a FEBEM, lá é muito podreira, só tem meninos bem ruins que apanham muito dos monitores. A gente chama mesmo é de Fundação Casa do Capeta. Eu estou no Geneton porque meus pais morreram queimados no barraco onde a gente morava; o Elias, um menino mais velho, morava lá também na favela do Jaguaré e disse que os ricos quando vão fazer os condomínios deles mandam queimar as casas dos pobres. O Elias perdeu a mãe nesse incêndio, do pai ele nunca soube.”
“Tem uns tio bonzinho que sempre aparecem no Dia das Crianças e no Natal, eles dá presente pra nós; foram eles que botaram computador e agora tem Cartoon e Discovery Kids na nossa TV, mas os monitores só deixam a gente ver 2 horas por dia, eles são muito chatos, eles tá sempre dizendo: ‘tem coisa que pode e tem coisa que não pode’. Não pode é o que eles mais falam; criança não pode quase nada, mas eles fica assistindo filme a noite toda, que eu sei. O que eu mais gosto de ver no Cartoon é a Mansão Foster para Amigos Imaginários, a mansão é que nem o Geneton, o senhor Coelho e a Madame Foster recolhem os amigos imaginários quando as crianças abandonam eles ― nunca que eu vou abandonar a Daiane, ela é a minha melhor amiga. Lá na escola, as outra menina me zoa, elas não brinca comigo no recreio, nem convida para as festa delas; na escola tem os ‘populares’ e o resto, quem não é popular chamam de ‘os FEBEM’, mesmo que não seja do abrigo. Só não dizem na cara porque têm medo de apanhar, têm medo de nós, como se a gente fosse tudo bandido; as meninas da minha classe só me dão tchauzinho na saída, quando os pais buscam elas e eu estou entrando na perua do Geneton. Fazem só pra chatear, como dizendo: ‘agora eu vou pra minha casa, e você?’”
“Alguns meninos e meninas daqui tem mãe na prisão, todos sonham que ela vai voltar e tirar eles daqui; a mulher que me levou, Dona Mércia, disse que ia me levar para morar num apartamento grande, me chamava de filha, e que ia ter um quarto só pra mim e até ia ganhar um Gameboy; acreditei nela, todo mundo dizia que era uma chance na vida. Mas não foi nada do que ela falou, ela e só reclamava comigo: que não como direito, que não arrumo o quarto, até me levaram numa pissicóloga para ela tirar a Daiane de mim. Essa bruxa tava sempre gritando, me chamando de louca, dizia que eu não podia ficar falando sozinha, que fazia xixi na cama toda hora ― isso é vida? Daí que eu penso na história de ter uma chance, eu já tive uma chance na vida: ninguém sabe como não morri queimada junto com meus pais, se eu fosse a Daiane acho que eu tinha salvado eles; fico triste quando penso nisso, fico triste também porque aquela mulher mudou meu nome e botou o da mãe dela que tinha morrido. É ruim ser devolvida, parece que fui eu que aprontei e que não sirvo pra ninguém. Por isso que gosto tanto de ver a Daiane dos Santos na TV, ela é tão dez!, ela é uma campeã de verdade, admiro muito ela porque ela continua, dá aquele tuíste carpado mesmo sentindo dor.”
Os adultos só mandam, mandam em tudo, mandam nas coisa e nas palavra, por exemplo, quando a gente faz merda aqui no Geneton, primeiro os monitores dão bronca e depois vem o diretor e dá um castigo de verdade. Ser criança é difícil por causa dos adultos, ser criança demora muito; aprendi que primeiro a gente precisa saber quem manda nas coisas, para depois fingir que acredita no que dizem. Na escola nunca falam: ‘você está de castigo’, mas você está, fica fora da classe sem poder brincar, só esperando a aula acabar; você tá de castigo, mas eles dizem que não é bem assim. O problema de gente grande é que eles é só grande, não é melhor que nós, os pequeno, a gente vira grande quando esquece como é ser criança.”
7 comentários:
"...a gente vira grande quando esquece como é ser criança.”
Ai, me deu vontde de chorar... é uma frase pungente, tão pungente quanto todo o texto.
Beijokas e bom domingo.
Caro Missosso,
gostei!
abs
só posso agradecer, rápidos e fiéis leitores.
Vida dura a de criança e dessas crianças é quase de ficção, dói só de pensar.
Muito bem retrata a infância com sua imaginação e seus (des)encantos.
Grande conto missossso1 Parabens1
tks, ainda e sempre.
Dura realidade!
Sentimentos... que por mais bem escritos, e que o autor o fez com muita competência, ainda assim, são tão íntimos que só quem vive é que sabe...
Mas os reflexos todos sabemos!
Ótimo,sempre!
Postar um comentário