quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Survival of the Sickest

Antes de ficar doente, eu era uma garota de dezesseis anos igual a todas as outras que conhecia. Então me mandaram para “casa”. Quer dizer, o que fizeram foi me jogar tipo num lar de idosos onde mora o meu pai, meu avô, minha avó, minha tia e o marido dela.

― Você pode ficar com o quarto que era do seu... ham, irmão, bem, você entendeu?...

“Irmão”. Quanta cara de pau. Só faltava dizerem “seu irmãozinho gêmeo”. A capacidade que esses velhos de merda têm de soltar abobrinhas deste naipe me deixa desesperada ― mentem sem nem piscar! ―, meu pai, então, é o rei do óleo de peroba facial neste asilo.

Anotação importante: PRECISO aprender a falar como eles.

― A lista de obrigações domésticas está sobre a sua mesa. Seria conveniente também que você arrumasse um trabalho.

E assim fui amavelmente introduzida pela minha avó a uma rotina de tédio e tarefas sem sentido. Parte do dia fico de criada dos dinossauros e na outra vou para uma sala cheia de idiotas onde passo horas com o corpo imobilizado numa cadeira. Dizem-me que ainda tenho muito a aprender.

Já tinham me falado que a Zumbilândia era esquisita, mas não dava para imaginar o quanto. Outra anotação: adultos são pessoas que levam uma vida bagaceira e que acham a maior graça em freqüentar espetáculos em que lhes contam que a vida deles é sem graça.

Todo mês tenho de ir fazer exames, receber tratamento e essas coisas; daí que me scaneiam um dia inteiro naquelas máquinas escrotas e sequer me dispensam do trabalho no dia seguinte. Minha tia e minha avó metem o bedelho no meu tratamento ― são tão interessadas na minha saúde! Sei bem o que querem as duas biscatas.

Dizem que nunca foi, mas não tem sido fácil ser jovem neste começo do século XXII. A vida melhorou, mas... para pior. As pessoas hoje vivem quanto querem, a tecnologia permite alongar a vida para sempre, ou quase, porque esses hipócritas ainda não conseguiram abolir o acaso. Ainda se morre e nasce por acidente.

Foi um acidente aéreo que matou meu “irmão”. Ocupo o quarto dele, durmo na cama que foi dele, uso até algumas roupas unissex que lhe pertenceram. O pouco que tenho foi dele. Diagnosticaram em mim um câncer de medula, leucemia mielóide crônica, que costuma ser bem agressiva em adolescentes. Isso eu tenho e ele nunca teve.

― Não queremos saber dos péssimos hábitos que a senhorita adquiriu na Escola, nesta casa não se fuma e acabou ― o mala sem alças do encostado que come a minha tia me dá lições de moral; na real, todos os panacas desta casa me passam sermão a respeito de tudo. Vou me candidatar ao troféu saco de ouro. Haja.

Por estranho que pareça, aproveito para fumar nos dias que vou ao hospital: é o momento em que a vigilância sobre mim fica mais frouxa. Agradeço todos os dias aos meus cromossomos 9 e 12 que trocaram pedaços entre si e passaram a produzir uma proteína que acelera a divisão celular e impede reparos no DNA. Resultado: câncer.

Mais uma para o meu caderninho de vômitos íntimos: só estou viva porque posso morrer a qualquer hora.

Os rebeldes do corpo são as células cancerosas; primeiro, elas se locomovem, as células vizinhas tentam inibi-las, mas elas continuam a se deslocar; segundo, crescem, devido a falhas nos fatores que as impediriam; terceiro, elas se dividem para sempre. No xadrez dos órgãos, câncer é quando os peões recusam o sacrifício.

Pós-humanos, estes babacas da Zumbilândia se consideram pós-humanos! Pós-de-traque é o que são. Estão sempre falando de como são incríveis, das coisas geniais que fizeram e as pessoas ma-ra-vi-lho-sas que freqüentam. Por isso é que lá na Escola nós os chamamos de mortos-vivos.

A Escola é o único lugar onde se vive à vera. Mas acaba um dia, quando fazemos 20 anos. Lá estamos vivos, cercados de gente que está acontecendo, brincando, aprendendo, amando, criando. Os cyborgues aqui fora não fazem nada disso, estão por demais intoxicados de si mesmos.

O que não nos dizem na Escola é o que vai acontecer com a maioria de nós. Vim de uma unidade especial, a H.A.C.: sou um produto do programa Human Advanced Cloning, nos auto-batizamos de hacs. Somos cobaias de deuses sebosos, “portadores de peças de reposição” para esses malditos imortais. Carne de abate.

― Como é possível que você não melhore nem com mais moderna terapia gênica, querida? ― fofa que nem a bruxa de João e Maria, minha vó.

Vovó e titia já estariam “usando” vários partes de mim se eu não tivesse caído doente; elas não se conformam. Vejo como elas me cercam nos corredores, me apalpam com os olhos quando saio do banho, fofocam entre si dizendo que estou anêmica, febril, sempre cansada; um pé no saco delas, essa doença.

Tive um professor que disse que éramos os novos proletários. Mais uma das meias-verdades de que tanto gostam; na verdade, me sinto pior de que uma escrava, aliás, trabalho que nem uma no Manicômio Arkham que é a porra do meu “lar”.

Nota: não confie em ninguém com mais de cem.

Apoptose. A medicina dominou o envelhecimento há um bom tempo já, descobriram o “relógio do DNA”: na ponta das fitas dos cromossomos há uma série de bases repetidas, o telômero; a cada divisão, a célula perde 200 dessas bases, até que fica incapacitada de se recodificar e morre. Tiraram a tesoura da mão das Parcas.

O ser humano tem 27.000 genes, a combinação entre eles é da ordem de 3 bilhões elevado ao quadrado, o que torna a chance de repetição de um genoma uma possibilidade praticamente nula. 99,8 % do material genético é comum a todas as pessoas, mas esses 0,2 % codificam 6 milhões de diferenças cuja combinação permite moldar indivíduos muito singulares.

Os hacs somos mais frágeis, temos maior tendência a desenvolver tumores, lesões no fígado e artrite, envelhecemos rápido, temos a imunidade bem baixa ― estamos sempre infectados por alguma coisa. Ainda crianças, a gente saca o que vem pela frente (crianças não são burras), sabemos que só vão sobreviver aqueles que fizerem alguma descoberta científica, uma obra de arte importante, qualquer coisa que sirva ao mundo louco dos adultos. Eu não tinha nenhum dom especial.

Até que descobri que “sabia” ficar doente. Já tive outros tumores em células-tronco, no timo, no baço; o meu corpo não quer ficar adulto. Parece que sabe o que o aguarda. Enquanto estiver doente, estou salva. Seja como for, já me decidi: nunca vou ser como eles.


(plágiomenagemàtrois a Henri Michaux e Kazuo Ishiguro)

6 comentários:

Dalva M. Ferreira disse...

Uau! Um Holden Caufield do futuro, muito legal. Genial.

angela disse...

A Dalva falou tudo em poucas palavras, eu vou precisar de mais.
Além de uma aula de genética você nos presenteia com esse texto "juvenil", nem um pouco inocente. Lembrei de alguns pensamentos meus da adolescência e muitas palavras de minha filha. A linguagem está perfeita. O amigo anda incorporando?

José Doutel Coroado disse...

Caro Missosso,
brilhante elucubração sobre um possível (mais que provável...) futuro!
muito boa a criação literária!
abs

ps: espero e desejo que esse futuro nunca aconteça! mas, infelizmente, vai acontecer!

filipe com i disse...

Holden Caulfield?, médium?, puxa tou cercado de amigos(as) bacanas mesmo; o comentário do José me faz pensar que a humanidade sempre pode ser melhor e pior do que pensávamos - por isso é tão difícil julgá-la. O ser humano é um mistério.

Lídia Borges disse...

Pois bem!

Deixa um certo amargor na língua mas com um chá forte de criatividade fresca colhida neste texto, o mau estar passa depressa.

L.B.

mauverde disse...

Não é um mistério, meu caro: é,nas suas próprias palavras a mim (há alguns anos), uma conta que não fecha.
Perdei, oh vós que entrais, toda esperança.