domingo, 31 de outubro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 8

Aldeia dos Quatro Montes



(se desejar ler os capítulos anteriores: Cap.01 a Cap.05Cap.06, Cap. 07)


8

A uma das mesas do outro lado da sala, o Senhor Director e Pedro, entretinham-se com umas alcaparras e pão centeio, daquele bem escuro.
- Meu caro, seria uma honra poder contar com uns escritos seus no nosso Mensageiro. Aliás, se me permite a audácia, quando soube que pretendia ficar por 4 Montes durante os próximos tempos, pensei que poderia elaborar uma crónica, ficando o tema ao seu livre arbítrio.
- Agradeço o convite…
- Não, não… Nós, no Mensageiro, é que ficamos gratos se o meu caro Pedro aceitar compartilhar connosco as suas ideias. Sabe… Em 4 Montes, existem poucas pessoas disponíveis para opinar livremente. Muito poucos saberão alinhavar umas linhas que façam sentido… Mas, o que mais me intriga, é que são capazes de tudo dizer e criticar nas tertúlias de uma qualquer mesa de café, porém, se os desafiar para darem à estampa, tornando público nas páginas do nosso Mensageiro, encontram sempre algo que os impede…
- A vida não está fácil…
- Não estará para ninguém… Não esconderei que o nosso Mensageiro vive com enormes dificuldades… 4 Montes não tem empresas de gabarito, poucos são os que acham que vale a pena subscrever um jornal… Mas, para mim, é um desafio que não quero perder! Enquanto puder, o Mensageiro há-de continuar a tentar trazer um pouco de luz a estas mentes.
Pedro continuou a ouvir os planos e sonhos do Senhor Director mas os seus olhos foram divagando pela sala.
Junto à janela, um casal chamou-lhe a atenção.
- Desculpe… Não me lembro daquelas caras. Aquele casal, na mesa da janela…
- Ah… Pois, o meu caro Pedro ainda não conhece o Senhor Doutor Juiz. Se não estivesse acompanhado, teria o prazer de os apresentar. Pessoa correctíssima, de fino gosto e de bom trato… Um Juiz como 4 Montes não tinha há já muitos anos.
- E a senhora será sua esposa, presumo?
- Não… O Senhor Doutor Juiz é um solteirão… A senhora é uma amiga, viúva de um grande amigo, dos tempos da Universidade. Penso até que terão sido colegas de curso.
- A senhora é formada em Direito?
- Desculpe, não me expliquei correctamente… O falecido é que foi colega…
Ana Luísa estava deliciada com o prato que António Augusto tinha escolhido. Quando a travessa chegou à mesa, só reconheceu o frango corado… António Augusto colocou no seu prato, um pouco do acompanhamento e pediu-lhe para provar.
- Mas… é muito saboroso!
- Se lhe disser que é uma espécie de esparregado, acha que acreditaria?
- Diferente…
- É de nabiças e, para além disso, como vê integra batata…
Para Ana Luísa, um esparregado era… um esparregado! Mas aquilo era diferente. E o frango era absolutamente distinto dos que poderia comer na cidade… Muito mais saboroso, sabendo mais a… frango.
A sala foi-se esvaziando de comensais.
Duas mesas, uma em cada ponta, ainda solicitavam a atenção de Maria e da Ti Joaquina. Esta pegou em duas fartas doses de uma sobremesa que ela sabia ser muito do gosto do Senhor Director.
- Ora, vejam lá a surpresa que vos preparei.
Pedro e o Senhor Director, que estavam embrenhados numa discussão sobre os minerais raros da China e do perigo que representava para o mundo ocidental que aquele país controlasse mais de noventa por cento das reservas comerciais, olharam para os pratos que a Ti Joaquina lhes pusera à frente.
- Minha excelsa senhora… Depois deste opíparo repasto, ainda tem a ousadia de nos regalar com esta tarte de camoesas? Tende piedade de nós, pobres sofredores…
- Ti Joaquina, este cheirinho à maçã camoesa é uma tentação a que nem me atrevo a resistir…
Isto dito, ambos se atiraram à tarte, que de morna que estava, se desfazia em sabores únicos…
A Ana Luísa e António Augusto tinha-lhes chegado o odor inebriante da camoesa e da canela…
O Senhor Doutor Juiz atreveu-se a fazer um gesto para chamar a atenção da Ti Joaquina…
- Ó Senhor Doutor Juiz…
- Seria possível provar um pouco dessa sobremesa?
- Maria, traz-me aí a tarte…


(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sábado, 30 de outubro de 2010

tempo

Atravessei-te numa mirada anterior

E em mim dói tudo no depois

Sou prisioneiro do passado

Nunca cheguei ao presente

Nem tenho o futuro

Onde tens existência...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Fui Eu















fui eu
que acendi a luz
do seu destino
você estava tão perdido
que nem percebeu

Agora fica aí todo prosa
pensando ser
a "sopa primordial"
cheio de si
achando-se especial


eu espero
ressabiada
mau humorada
a hora do seu tropeço

ofuscado pelo brilho
não verá
aquela pedra
que todo caminho
há de ter!

domingo, 24 de outubro de 2010

LOWCULTURA na Casa das Rosas



o conto
e a voz
que conta
o conto


Agradecimentos: Casa das Rosas, Donny, Nicole, Mayra, Luana, Jackson e toda a equipe

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 7

Aldeia dos Quatro Montes

(se desejar ler os capítulos anteriores: Cap.01 a Cap.05, Cap.06)



7
A porta da rua entreabriu-se…
- Dão-me licença?
A Ti Joaquina, ao desviar o olhar para a entrada, derrubou a chávena do café…
- Ó Ti Zé, que raio de mania a sua… Entre, entre…
Enquanto a Ti Joaquina limpava o balcão, Maria voltou aos seus afazeres e Pedro sentou-se num dos bancos altos à espera que lhe fosse servido o café.
- Então Ti Zé como é que vai a vida?
- Queira desculpar a indelicadeza… Quem é o senhor?
- Não me diga que não me está a reconhecer?
-…
- Sou o Pedro…
- O filho do Salústrio…
- Ah!... Já estou a ver… O senhor Engenheiro…
A Ti Joaquina, que conhecia bem a peça, percebeu pelo tom de voz que o Ti Zé usara que não ia sair dali boa coisa.
- O mesmo de sempre?
- Sabe como é…
O Ti Zé era conhecido em 4 Montes pela nomeada de Ti Zé do Quartilho, já que era um apreciador de vinho tinto desde que lhe fosse servido na dose certa: um quartilho *… Nem mais, nem menos. Era a mania dele… Se não fosse um quartilho e se não fosse do tinto, nada feito!
- Ó Ti Zé, não me diga que ainda continua com essa mania?
- Saiba o senhor Engenheiro que esta mania tem cá a sua razão de ser… Mal comparado, e quem sou eu para falar dessas coisas, é como se o senhor Engenheiro mandasse fazer um cimento para uma parede e lhe deitasse menos areia que a medida certa… Se eu beber menos que a dose, cai-me mal… Lá está, o quartilho é a areia para o meu cimento!
A Ti Joaquina desatou à gargalhada.
- Ó Ti Zé… Areia é coisa que não lhe tem faltado!
- Pois… Ora faça o favor de botar aí mais um quartilho…
- O senhor Engenheiro veio de férias? Se bem me lembro estava lá para as Áfricas…
- Não… Vou cá passar uns tempos.
- Faz o senhor Engenheiro muito bem. O filho pródigo à casa torna!
Ao dizer isto, o Ti Zé deu uma piscadela de olho à Ti Joaquina.
- Olhe lá Ti Zé… Dê cá a sua garrafa. Já sei que quer levar mais um quartilho…
Enquanto media o vinho e, usando um funil, o vertia para a garrafa, Pedro despediu-se e prometeu voltar para o almoço.
- Bom rapaz… Pena é que tenha dado tão grande desgosto ao pai.
- Ó homem, que está para aí a dizer?
- Como se a senhora não soubesse… Aquele casamento com a negra de Angola…
- E que temos nós a ver com o coração de cada um? Se ele gostava dela!
- Ora essa…
- Ouça bem, Ti Zé… Agora isso não tem importância nenhuma que ela já cá não mora… Finou-se!
O Ti Zé olhou para ela. Benzeu-se, juntou as mãos como se fosse rezar, olhou para o tecto…
- Deus a tenha…
…….
A sala de refeições da Pensão Moderna abarrotava de clientes… Ao barulho das conversas juntava-se a azáfama das empregadas, duas, que tentavam satisfazer os pedidos.
- Ti Joaquina, duas sopas…
- Para quem?
- Para o Senhor Doutor Juiz…
- Maria, serve aí duas sopas. Vê lá se está bem quente!
Na mesa do canto, junto à janela que dava para o quintal, Ana Luísa e António Augusto desfrutavam a paisagem. Um céu azul como só no Outono se podia apreciar… As folhas que começavam a ganhar tons amarelados e alaranjados e que já cobriam partes da terra. Os talhões de couves e nabiças, perfeitamente alinhadas, como se tivessem sido plantadas a régua e esquadro… Encostadas a um tanque de pedra, uma dúzia de abóboras, das mais variadas cores e feitios, compunham o quadro.
- António Augusto, realmente você tem razão! O Outono é muito bonito!
* quartilho: antiga medida equivalente a meio litro





(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

Fotos do Lançamento da Revista Lowcultura






































Casa das Rosas, 23 de outubro de 2010







quarta-feira, 20 de outubro de 2010

domingo, 17 de outubro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 6

Aldeia dos Quatro Montes


(se desejar ler os capítulos anteriores: Cap.01, Cap.02, Cap.03, Cap.04, Cap.05)



6
Ana Luísa entrou na Pensão Moderna, usando a porta que dava para o mini-mercado. Fez-lhe uma certa confusão aquela casa. Nesta porta era mercearia, frutaria e sabe-se lá mais o quê. Logo ao lado, passara por uma entrada para o café e que dava também para a sala de refeições… E se tinha o nome de Pensão, haveria de ter alojamentos para hóspedes!
No entanto, apreciou o esmero que se via na meticulosa arrumação de todos os produtos…
Vinda lá do fundo da loja surgiu uma moça.
- Bom dia, minha senhora! Em que posso ajudá-la?
Ana Luísa perguntou se tinham lenços de papel perfumado. Com a compra feita, colocou os óculos de sol e voltou à rua. Ao sair da porta, quase era abalroada…
A Ti Joaquina, pois dela se tratava, para evitar o embate, deixou cair uma caixa que trazia nas mãos. Ouviu-se um tilintar de moedas que se espalharam em todas as direcções. Para baixo das prateleiras, para o passeio… Umas rodavam sobre si próprias, outras tiniam…
- Ó minha rica senhora! Então…?
- Ora essa… A senhora não tem cuidado e ainda se atreve…
- Ó minha senhora! A senhora anda-me aí com esses óculos de tapar a luz e depois sou eu que não tenho cuidado? Está bem, está!
Ana Luísa olhou para a Ti Joaquina, tirou os óculos de sol, voltou a olhar para ela… Virou-se e foi-se embora…
A Ti Joaquina ia atrás dela mas a moça pegou-lhe pelo braço.
- Senhora Joaquina… Sabe quem é a senhora? É a senhora que ontem andava a passear com o Senhor Doutor Juiz!
- Pois olha… Tem que aprender maneiras com ele! Onde já se viu? Quase me atropela e ainda se acha cheia de razão! Toda enperiquitada… Até parece que tem o rei na barriga…
- Deixe lá!
- Ai, deixo, deixo… olha, apanha os trocos!
Esbaforida, a Ti Joaquina dirigiu-se ao café.
E quem havia de estar ao balcão?
- Ti Joaquina…
- Olha o meu engenhocas!
Como sempre fazia, pespegou-lhe um beijo em cada face e agarrando-lhe o rosto nas duas mãos, pôs-se a olhar bem para ele.
Pedro, como sempre lhe acontecia, ficou vermelho que nem um pimento.
- Então como é que vai o meu engenheirinho? Chaga assim de repente… Não diz nada… Quase me mata do coração!
Quando acalmou esta manifestação de mimos, lá ficaram a conversar…
Maria, que tinha dado uma espiadela através da janela da cozinha, percebeu que a conversa se tornara séria… Agora, os dois falavam mais baixo. Logo a seguir, a Ti Joaquina agarrou nas duas mãos de Pedro e depois deu-lhe um abraço bem sentido.
- Raio de vida, rapaz! E agora que é contas fazer?
- Vou ficar por aqui uns tempos…
- Fazes bem! Estes ares puros de 4 Montes vão-te pôr fino… O tempo tudo sara!
- Diz bem, mas não tem sido fácil…
- Pedro! A vida tem sido boa para ti… Agora chegou a tua vez de saberes enfrentar essa desgraça… Olha, queres um café?
Levantaram-se os dois da mesa. A Ti Joaquina passou para trás do balcão, tirou o cachimbo da máquina do café, encheu-o, prensou-o e virando-se para trás perguntou se o queria como sempre, curto.
Pedro disse que sim.
Maria veio lá de dentro, da cozinha. Pedro olhou para a moça que se aproximava dele e, a princípio, nem a reconheceu.
- Engenheiro Pedro, como está o senhor?
- Maria…
Pedro estava embasbacado. A rapariguita que vira há não sei quantos anos, transformara-se numa senhora mulher. Bonita, cabelos negros, bem proporcionada de corpo, com as curvas nos lugares certos, olhar seguro mas doce… O sorriso meio tímido pedia que ele dissesse qualquer coisa…
- Puxa… Estás uma mulheraça! Dá cá um abraço!
A Ti Joaquina colocou a chávena do café no balcão fazendo mais barulho do que o necessário.
Ela bem sabia quem tinha em casa.




(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

preciso aprender a desistir (dos meus vícios)

devo confessar que já cometi
poemas

só que poesia é
fogo

poesia escapa sempre
escapa

fumaça de incêndio
(que não há)

na verdadeira poesia não há verdade
só poesia

a verdade é que na vida estamos sós
e a poesia

na vida a poesia é tudo
ou nada

e no entanto a vida pede uma poesia
que falta

mas à poesia não falta
nada

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sem Saída



és infinitamente mais estranho
mais louco
mais roto
que qualquer outro ser humano

veja as contradições
a agonia
esse borbulhar constante de sua alma
arquejante
sem repouso
sem guarita

veja esse olhar cruel que tentas disfarçar
essa voz treinada
adoçada
controlada
esse corpo inchado
esse andar pesado
(bem sabes que as profundezas é o seu lugar)

sonhas que o poder irá salva-lo
Como podes achar
um colo macio
um alento
se a sua pele
só tem veneno
escamas
espinhos.

és infinitamente letal


terça-feira, 12 de outubro de 2010



e pra ver "essa praga de urubu, com que roupa eu vou"?

domingo, 10 de outubro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 5

Aldeia dos Quatro Montes

(se desejar ler os capítulos anteriores: Cap.01Cap.02Cap.03Cap.04)



5



Salústrio olhava em direcção ao filho, Pedro, como se ele fosse transparente, como se não estivesse ali, à sua frente.
Percebendo a situação, o Senhor Director, mandou-se para a frente, abriu os braços e engolfou neles o rapaz. Rapaz, como quem diz, pois Pedro já passara bem dos trinta anos.
- Então, meu caro Pedro! Folgo em vê-lo por 4 Montes. Há um bom par de anos que não nos honrava com a sua ilustre visita.
Salústrio tentou ver se no carro estava mais alguém…
Pedro soltou-se do abraço do Senhor Director e andou dois passos…
Olhou o pai, olhos nos olhos…
Salústrio, finalmente, libertou-se da paralisia que o acometera e, saindo do balcão, abraçou o filho.
O Senhor Director decidiu sair de cena, fechando atrás de si a porta do Café ArcoBotante.
 Ao passar pelo carro, por sinal uma bela máquina, reparou nas luzes acesas… Ainda olhou para dentro do café mas aqueles dois tinham mais que fazer… Abriu a porta, e ao ouvir o motor, ficou com a certeza de que Pedro estava tão nervoso como o pai. Nem tinha parado o carro.
.......
Pedro era o filho mais velho de Salústrio. Já fizera trinta e seis anos. Com grande sacrifício do pai, tinha tirado o curso de engenharia civil, na capital. Brilhante aluno, arranjara emprego com facilidade logo que teve o canudo. Fora trabalhar para uma grande empresa de construção civil, que tinha projectos em vários países. Depois de um ano de tarimba, fora enviado para Angola, onde rapidamente singrou nos quadros da firma. Foi lá que conheceu a Isabel, sua colega na empresa mas com formação na área de gestão.
Para além da inegável competência técnica, Pedro fora atraído pelo sorriso franco de Isabel. Os colegas diziam que essa treta do sorriso era para disfarçar…
- A gaja é mas é… boa como o milho!
Pedro nunca na vida teria imaginado que se apaixonaria, perdidamente, por uma pessoa de raça diferente da sua… Mas a vida é como é…
Quando, num dos telefonemas que fazia amiudadas vezes, contou ao pai que tinha começado a namorar percebeu, pela reacção dele, que iria ter um problema…
- Ó rapaz, já não era sem tempo… Mas, vê lá! Não te deixes agarrar por nenhuma lambisgóia dessas daí!
Quando conseguiu tirar férias, trouxe a Isabel a Portugal, até porque ela tinha família na capital. Uma das irmãs estava a estudar medicina.
Cada vez que se recorda da situação, Pedro fica furibundo. O pai, quando viu que Isabel era negra, até disfarçou bem… Mas, quando o apanhou a sós, perguntou-lhe se aquilo era a sério e como Pedro lhe respondera que estavam a pensar em casar o mais breve possível, o pai só lhe dissera:
- Pois… Espero que sejas muito feliz! Mas, na minha casa essa preta não volta a entrar! E não te atrevas sequer a convidar-me para o alambamento!
O senhor Salústrio tinha feito a guerra em Angola e conhecia o linguajar da terra.
A partir daí, Pedro tinha-se afastado do pai.
Casara com Isabel e decidiram ficar a viver em Angola…
…….
Quem passasse em frente ao ArcoBotante estranharia o facto de, apesar da hora, as luzes já estarem apagadas e os cortinados estarem corridos… O facto de um carro estranho estar estacionado, bem em frente à porta, levaria os passantes a concluir que algo fora do vulgar estava a acontecer… O letreiro luminoso, piscando, era o único sinal de normalidade.
No andar de cima, sentados à mesa da sala de jantar, Salústrio e Pedro comiam uns ovos mexidos… Não pareciam dar grande importância à comida.
- Pai, estava a pensar ficar um tempo cá em casa…
- Fazes bem… Olha… diz-me, como é que aconteceu isso? Apareceu, assim, de repente?
- Sabe como é… ela começou a sentir que algo não estava bem em Abril. Foi a um ginecologista e ele mandou-a para Joanesburgo, para fazer uns exames e pronto… Quando soubemos do resultado, ela foi-se abaixo… Foi o princípio do fim. Acabou-se o sofrimento no dia 17 de Setembro.
Pedro e o pai ficaram quedos… O garfo de Pedro mexia nos ovos, puxando-os para um lado, depois para o outro. Salústrio nem sabia o que dizer, nem o que fazer… Levantou-se e foi à cozinha. Quando voltou, trazia na mão uma pavia, bem grande, cheirosa… Abriu a mão de Pedro e colocou-a lá.
Pedro olhou para aquele fruto de que tanto gostava, inalou o aroma tão especial, acariciou a pele suave, passando os dedos lentamente…
Sempre se espantara com a cor das pavias, aqueles tons rosa e avermelhados… E o sabor…
Semi-cerrando os olhos, deu a primeira dentada.


(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sábado, 9 de outubro de 2010

A Lenda da Maria Sangrenta



Naquela altura Anápolis mal chegaria aos trinta mil habitantes, mas tinha aeroporto, ou melhor, havia lá uma pista asfaltada onde pousava um bimotor por semana. O Presidente ia para a Amazônia com escala em Goiânia, o mau tempo forçou o pouso na cidade, onde, cem anos antes, Da. Ana das Dores perdera uma mula com a imagem de Santana. Da fazenda das Antas fez-se a cidade das Anas, como ficou cristãmente batizada.

A excitação foi geral, o Presidente fez comício, botou falação comprida e ali foi que assinou a declaração em que dizia ao povo que a capital seria transferida para a região central do país. Lindomar gostou logo daquele homem fino de rosto e de maneiras, que magnetizava a todos falando de um país grande e próspero que viria; o sobrenome do homem é que lhe não entrava na cabeça: ouvia “cu-de-chefe”, mas isso não era nome de gente.

O servente de pedreiro Lindomar não pensou duas vezes, assim que os empreitas começaram a recrutar, ele se mandou com mulher e três filhos para construir Brasília. Em novembro de 1956 ele estava lá quando começaram a esburacar as fundações do Brasília Palace Hotel e do Palácio da Alvorada. Nos próximos três anos e meio de insanidade épica, ele ajudaria a erguer aquelas caixas de vidro, mármore e concreto armado com seixos de quartzito.

Antes disso, porém, ele liderou uma revolta dos candangos no canteiro de obras do palácio; quebraram barracões da empreiteira e até derrubaram o “Catetinho”, galpão rústico de jacarandá e peroba do campo onde Juscelino se hospedava nas visitas à futura sede do Poder Executivo. A peãozada recusou-se a comer a carne bichada do rango. Os patrões responderam estralando o reio: mandaram dar uma coça nos líderes da rebelião, vitimando o amigo Paraibinha. Lindomar passou a freqüentar a casa da viúva.

Construir a cidade a partir do nada, no meio daquele cerrado seco e calorento, foi um desafio ao gênio da raça; o Brasil mostrava ao mundo um estilo próprio e único, amálgama do engenho e da arte de um povo voltado para a modernidade. As superquadras emolduradas por largas avenidas desembocando em rotatórias, a esplanada dos ministérios com a barragem do Paranoá ao fundo, a arquitetura de colossais vãos e curvas, os pilares de extrema leveza, os brises de fibro-concreto, os granitos, o elemento vazado dos combogós, tudo lhe dizia que virara um gigante. Vieram mais três filhos.

Como na vida ninguém passa sem aperreio, a viúva do Paraibinha, agora convertida em amante, emprenhou. Arrelia danada. O parto foi uma agonia, a criança, um macho, nasceu bem, mas a mãe quase morreu de uma hemorragia incontrolável. Uma vizinha amamentou o bebê enquanto a mãe se recuperava; Lindomar ia todos os dias visitá-los em Taguatinga. Até que Feliciana, a esposa traída, apareceu na porta do barraco, louca, virada no Coiso, ameaçando o marido, a amásia e a criança. Um pampeiro. Na saída, ainda chutou o cachorrinho cotó da outra.

Pressionado pela patroa, Lindomar mijou pra trás, negou-se a registrar a criança, ofereceu dinheiro e passagem para que a viúva deixasse o Distrito Federal. Ela recusou. Batizou o menino com o nome de Omar, homenagem ao pai fujão e lembrança perene de que, para ela e o filho, a vida nada tinha de linda. Mudou-se para o Rio de Janeiro, foi morar na Rocinha, no puxadinho do barraco de um irmão. Ele se tornou um pai exemplar para os filhos legítimos, conseguiu formar advogada a mais nova, Guiomar, que alcançaria altos cargos na Secretaria de Segurança, na Eletronorte e no ministério de Minas e Energia.

A ascensão da caçula tirou o pé de todos da lama, após trinta anos de sacrifícios a família deixou a cidade-satélite do Guará. Lindomar nunca mais soube notícias do filho, embora Omar freqüentasse a mídia carioca e nacional, traficante conhecido pela alcunha de Mazinho Biluca. Mazinho, implacável nos “negócios”, era um bom filho: instalou a mãe na cobertura de um prédio na favela, botou deque e piscina na varanda, ofurô, TV tela plana, piso de porcelanato e acabamento com pintura texturizada. Namorava Maria da Penha, a popozuda do pedaço. Vidão.

Biluca tinha o costume de pular a cerca, bandido quase nunca é homem de uma mulher só. Acontece que ele passou do ponto e catou a meia-irmã falsa loira da Maria, que, inconformada, resolveu se vingar do casalzinho. Maria era popozuda e linda, mas louca; entregou a fita para os traficantes rivais, molezinha, eles se encontravam fora da favela num apê de cinema que o safado comprara na Barra da Tijuca. Fez questão de acompanhar toda a operação: a tocaia, o julgamento dos chefões no alto do morro, o esculacho dos matadores e a execução de ambos com requintes de crueldade.

Os assassinos deixaram os pertences do Mazinho com Maria: um molho de chaves, o celular, um patuá e a automática. Desvairada, ela saiu a esmo, vagando horas a fio pelos dédalos da favela; chegando ao asfalto, foi tomada por uma firme resolução: queria conhecer o ninho de amor em que a traição se consumara. Pegou o lotação para a Barra. O apartamento era de um luxo delirante, os quadros rodavam à volta dela, as cortinas, os sofás, as luminárias; sufocou com todo aquele chiquê de uma vida estofada que não lhe tinha cabido. Deixou-se cair na cama redonda do quarto, chorava de soluçar.

O espelho, que tomava todo o teto do quarto, refletia cenas tórridas de sexo dos amantes mortos em alternância confusa com a imagem de uma mulher abandonada; como que acompanhava à distância seus próprios atos. Alguns dos livros mais antigos sobre a construção de Brasília trazem fotos invertidas, já que os primeiros registros foram feitos com filmes próprios para slide; da mesma forma, Maria enxergava aquela mulher lá no alto apanhar na bolsa uma arma, ficar de pé sobre a cama e colocar o cano na boca antes de estourar os miolos. A última coisa que viu foi o sangue salpicando o espelho.

O apartamento passou sete anos fechado. Nas noites de lua nova, corriam histórias de vizinhos sobre horríveis e inarticulados gritos vindos do quarto da Maria Sangrenta. Até que uma família se mudou para lá, um lobista de Brasília com a segunda mulher e o filho pequeno. A rádio-pião do condomínio logo noticiava que ele tinha sido pivô de um escândalo recente de intermediações fraudulentas na Controladoria Geral da União. Mudados às pressas, os novos condôminos se instalaram no novo lar sem reformas minuciosas, reservando o quarto do espelho manchado para acomodar o excedente do depósito. Proibiram o menino de freqüentar o cômodo.

Mas criança, já viu, proibiu, tentou. Lindomarzinho, xará do avô, buscava um boneco encaixotado do Ben Dez na ala proibida de seu novo castelo; os pais tinham ido buscar as compras de supermercado na garagem, era um sábado de folga da empregada. Deparou-se com o espelho que emanava uma luz baça, curioso, subiu numa pilha de caixas. Diz uma versão horripilante que o menino foi pego pela alma atormentada da Maria Sangrenta, que o escangotou até lhe quebrar o pescoço. O certo é que a partir daqui começa um mistério que o inquérito policial nunca conseguiu resolver: nas roupas da vítima foi encontrado o sangue de uma mulher.

Lindomar soube da notícia em Brasília, o antigo pedreiro não suportou o acúmulo deste golpe à dolorosa perda da indicação ao Ministério das Cidades pela filha Guiomar. Morreu de enfarte numa idade avançada que ele mesmo desconhecia; a última coisa que ouviu foi o neto de sete anos chamando por ele enquanto caía no abismo.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O Retorno


Sem que se perceba
retornam
lembranças
jeitos
gestos

o edifício construído
desfeito
tijolo
por
tijolo
revela seu alicerce

a infância volta devagarinho
anunciando
o inverno

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

domingo, 3 de outubro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 4

Aldeia dos Quatro Montes

(se desejar ler os capítulos anterior: Cap.01, Cap.02, Cap.03)

4


- Ó Maria… Maria… Vai-me tirar aqueles figos cá para dentro. Não demora muito e está para aí a chover. Ó rapariga, mexe-te! Catancho… Eu, na tua idade…
A Ti Joaquina continuou a atazanar a desgraçada da moça, até que os figos estivessem todos resguardados. Ainda a Maria não tinha recuperado o fôlego e as primeiras pingas começavam a bater na janela que dava para o quintal da Pensão Moderna.
A chuva, de pingas grossas, caía forte. Maria olhou para o céu, carregado de nuvens escuras e baixas que corriam empurradas pelo vento. Bem falta fazia esta chuvada!
- Maria!
- Já lá vou, Madrinha.
A Pensão Moderna era o tem-tudo de 4 Montes. Tinha quartos para hóspedes, sala de refeições, mercearia, café e tinha a Ti Joaquina.
Mulher dos seus cinquenta e tal anos, viúva, sem criação, coisa que a deixara marcada para a vida. Compensava essa falta com dedicação e amor à sua casa, a Pensão Moderna.
Ganhara a casa com o casamento. Fora para lá trabalhar com doze anos, como ajudante para todo o serviço. O Senhor António enrabichara-se pela mocita e ao ela fazer quinze anos já tinham dado o nó, para escândalo de toda a gente. Nunca tal se vira… Um fedelho dar a volta à cabeça de um homem que tinha idade para ser avô dela… O casamento não durou muito que o senhor António era homem de se tratar bem… Boa comida, boa pinga, deu no que deu. As más línguas de 4 Montes disseram, à época, que se não fora a Joaquina, o homem durava mais uns bons anos. O facto de ter morrido com uma apoplexia e ter sido encontrado na cama quase desnudo tinha ajudado bastante a alimentar esta versão…
Há trinta anos que a Ti Joaquina tomara conta da Pensão que, na altura, não passava de uma casa de hóspedes, com os seus seis quartos, e uma sala de jantar pequenita.
Poupada como era, a Ti Joaquina, que tinha tino para o negócio e era trabalhadeira, transformou aquilo que herdara nesta bela Pensão Moderna.
- Que me queria, Madrinha?
- Vai lá acima preparar os dois quartos da ponta para uns senhores que devem estar a chegar… Despacha-te que, depois, preciso de ti na cozinha! Está quase na hora de começar a tratar do jantar.
- Já me esquecia… O Senhor Doutor Juiz mandou perguntar se a Madrinha lhe tinha conseguido arranjar as pavias…
- Ó diacho… Não é que me esqueci! O Manel prometeu que mas trazia amanhã… Olha, antes de tratares dos quartos, pega aí no telefone e liga lá para casa a dizer que pode cá passar amanhã, pela hora do almoço. Raio de cabeça a minha…
Ao balcão estavam dois clientes que queriam meter o Euromilhões.
- A ver se é desta que me toca a sorte… Bem jeito me davam os 100 milhões! Ti Joaquina se me sai o jackpot prometo que lhe faço um agrado! Olhe, dou-lhe um carro…
- Ó homem de Deus! E para que é que eu queria um carro? Se até hoje nunca precisei disso, ia ser agora que me iam ver atrás do volante… Tenha juizinho! Olhe são 10 euros… Esta semana anda toda a gente à procura da fortuna!
- Madrinha, o Senhor Doutor manda perguntar o que tem para o almoço de amanhã?
Maria lá voltou ao telefone com a resposta, enquanto a Ti Joaquina ia servindo os clientes. Com não parasse a chuva e o vento, foram ficando ao balcão.
- O senhor Doutor Juiz pede para lhe reservar uma mesa para dois para o meio-dia.
- Para dois? Deverá ser para ele e para aquela senhora… Guarda aquela mesa, junto à janela que dá para o quintal. Ó rapariga vai lá arranjar os quartos!
Na Rua dos Prazeres acenderam-se os candeeiros da iluminação pública. A água da chuva quase galgava os passeios. Estava aí o Outono…
…....
O Senhor Director estava ao balcão do ArcoBotante.
- Pois é Senhor Director… É como lhe digo. Isto está cada vez pior! Não há gente e não havendo gente… não há movimento. É uma pasmaceira completa! Veja lá o senhor quantos jovens não saíram de 4 Montes nos últimos anos? Uma brutalidade…
- O Senhor Salústrio há-de convir que em 4 Montes não se podem criar empregos em quantidade suficiente para fixar toda a juventude… O que nos falta é quem tenha capacidade de investimento. É necessário…
Parou um carro em frente ao café, interrompendo a conversa. Por detrás dos vidros carregados de chuva tentaram perceber de quem se tratava…
Quando a porta do café se abriu, Salústrio ficou que nem uma estátua, lívido e paralisado.
O Senhor Director levantou-se…
- Boa tarde, Pai.


(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.