domingo, 28 de novembro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 13

Aldeia dos Quatro Montes




(se desejar ler os capítulos anteriores clique aqui)

13

Quando o Senhor Director assomou à entrada do gabinete de Felisberta, ela estava numa interessante conversa ao telefone que, muito a contra-gosto, teve de interromper.
-… Olha, já te ligo. Até já. Como está Senhor Director? Deseja falar com Sua Excelência?
- Se não fosse muito incómodo…
- É só um momento…
Felisberta ligou para a extensão do gabinete de Sua Excelência e informou o Senhor Director que podia entrar.
Ainda o Senhor Director não se tinha movido e já se abria a porta de Sua Excelência que fez questão de vir receber o jornalista.
- Então como vai?
Entraram para o amplo gabinete de Sua Excelência.
Felisberta esperou que a porta se fechasse e, imediatamente, pegou no telefone e marcou um número.
- Sim… Sou eu. Pois é… Não! Era o Senhor Director… Também me saiu cá um chato… Vê lá tu que não há semana que passe que não venha falar com Sua Excelência pelo menos duas ou três vezes… E, depois, com aquele ar de fidalgo… sempre muito empertigado…
- …
- … hummm…sim… sim… ah! Não me digas? Como é que é? Espera aí… Conta lá isso mais devagarinho, para ver se eu percebo bem. Tás-me a dizer que o Senhor Director…
- …
- Não!!...
- …
- Não!... Não acredito!
- …
- Olha, desculpa lá… Tenho uma chamada em linha, a gente encontra-se para lanchar e depois tens que me contar essa história. Tchauzinho!
---------
Xavier cumprimentou Angélica com dois beijinhos e apresentou-a a Pedro.
- Não me bata muito! Eu bem sei que ainda não mandei o pessoal para arranjar aquilo na garagem… Mas prometo que logo que acabemos de instalar isto começamos a resolver o problema das infiltrações.
Angélica estava farta de ouvir as mais diversas desculpas… Ou era porque, talvez, fosse melhor esperar pelo tempo mais seco ou porque, agora, não podia ser que tinha que acudir a uma conduta de água. Mas, simpatizava com o ar bonacheirão do Engenheiro Xavier e tentava levar as coisas sem se aborrecer muito.
- Se eu tivesse a certeza que umas traulitadas davam resultado… Veja lá… Qualquer dia começam as chuvas a sério e, depois, é que vão ser elas.
- Pode confiar em mim. Até porque desta vez, temos uma testemunha… Não quero ficar mal em frente a um colega de ofício.
Angélica não era de 4 Montes. Tinha conseguido o lugar no Lar, através de um amigo, que, por sua vez, era íntimo de Sua Excelência. Estava em 4 Montes, desde que o Lar começara a funcionar, já lá iam uns bons oito anos. A princípio, pensara que não se ia adaptar a uma terriola tão pequenina. Para ela, que tinha crescido numa pequena cidade do litoral, que gostava dos seus passeios à beira-mar, do pôr-do-sol visto da praia, a mudança meteu-lhe algum receio. Mas precisava de trabalhar… Já tinha acabado o curso há dois anos e, ainda, não conseguira nada de jeito. Fizera o estágio numa instituição que prestava apoio a idosos e gostara daquele tipo de trabalho, passou a ter gosto em falar com os velhotes… Muitos deles, só precisavam de ter alguém que os ouvisse, que lhes desse meia dúzia de minutos de atenção. Quando aquele tal amigo lhe perguntou se, eventualmente, estaria interessada em trabalhar num Lar de idosos, não teve qualquer dúvida em lhe responder afirmativamente. Aprendera a gostar de 4 Montes e os velhotes, melhor dizendo, as velhotas do Lar eram, para ela, quase como se fossem pessoas da sua família… Dias havia que lhe faziam a cabeça em água… Mas, de cada vez que conseguia um sorriso nos olhos de um dos residentes, sentia-se feliz… Não era uma tarefa fácil mas, até hoje, não tinha razão para se arrepender da decisão que tomara.
- Engenheiro, diga-me lá… Porque é que estão a colocar estes semáforos?
Xavier tinha acabado de dar resposta a uma idêntica pergunta de Pedro. Lá teve de repetir a mesma ladainha. Que não imaginava, não tinha a mais pequena ideia das motivações da Administração. Só sabia que na semana anterior lhe tinham pedido um orçamento para fazer aquela obra. Do resto…
Pedro e Xavier conheciam-se há muitos anos… Quando Xavier se tinha instalado em 4 Montes para romper uma estrada, passara a ser cliente do café do Pai.
- Pelo que vejo, isto é do mais moderno que existe… Sabes como é que vão regular os tempos de abertura do sinal?
- Isso não é connosco… A XP só trata da parte da colocação dos suportes e do armário. Mas, amanhã, já vem para aí a empresa que vai instalar o equipamento electrónico. Se quiseres, e estiveres interessado, posso-te apresentar o engenheiro que vem montar a geringonça.
---------
Salústrio estava a acabar de meter umas chávenas na máquina de lavar louça quando entrou o Senhor Director.
- Um cafezinho, por favor. Venho da Administração. Consegui falar com Sua Excelência…
- E já sabe qual a razão para que 4 Montes tenha direito a uns semáforos?


(Estória, em capítulos, aos Domingos e Quartas)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

Broto
Me desdobro

Edema
Poema

Dos eus
Que não me pertencem
Mas me são

Do meu umbigo
Até o horizonte

Somente uma linha
Mais velha que o existir.

sábado, 27 de novembro de 2010

o marinheiro mareado

admiro o fluxo dos pássaros
os passos pelo nada
a seta pulsante
que são

nenhuma selva é melhor que a outra
para quem está perdido
e se o bico quebra
a vidraça é porque apesar de tudo
a fala é de todos
informe

vestíamos as crianças de marinheiro
acabavam de desembarcar neste mundo
mais louco
que o Fabuloso Destino do Chapeleiro
Louco

ontem hoje amanhã há tiros
fogo balas traçantes lares
invadidos
uma coisa leva a outra que leva a outra
mas acaba sempre
aqui

há o tempo indeciso
do inacabado
da dúvida
o corpo se equilibra entre
a reflexão e o relato

o lado belo da vida
é o que só está lá
como possibilidade
questionando
tudo ao seu redor

entretanto isto aparece coberto
por imagens que querem ser
poesia
com seus jogos de aproximação desdobramentos
rítmicos

pesando como um túmulo
irradiando morte para todos
os cantos
é como se nada se completasse
nem houvesse compaixão

apenas um rio a correr

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

a umidade das formas

o cosmo só existe
enquanto existo eu
e no entanto passa
muito
além do que a mente
creu

incrível não é que haja
a beleza
mas que algumas teorias
funcionem

assombroso não é haver
o mundo
mas acreditar
nele

ser humano é nunca estar
por inteiro faltar
à grande orgia
do ser

homens mulheres e outros gêneros continuam a chafurdar
nos mesmos batidos boleros
de amor ódio sexo
e morte

a vida é arte
a arte
sorte

a arte está na terra
molhada e as sensações que a própria terra
tem por estar
molhada

já sou só uma pena
voando
a vida imita a arte
sorte a dela assim
está viva




quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 12

Aldeia dos Quatro Montes


(se desejar ler os capítulos anteriores clique aqui)



12

O Lar da Nossa Senhora do Ó acolhia quase quarenta residentes. Uns mais velhotes, outros ainda com idades abaixo dos sessenta. A grande maioria eram senhoras, havendo só meia dúzia de homens.
A directora técnica, isto é, quem tinha a responsabilidade pelo funcionamento do dia a dia da instituição era a Dr.ª Angélica, ainda jovem, andaria nos seus trinta e poucos.
Da ampla janela do seu gabinete, estava a apreciar a azáfama no cruzamento onde estavam a ser instalados os semáforos. Bateram à porta e, logo de seguida, entrou a cozinheira, a senhora Aparícia.
- Ó senhora Dr.ª, isto assim não pode ser…
Angélica já estava habituada a estas entradas de rompante da cozinheira que, quase, todos os dias reclamava de alguma coisa.
- Diga lá…
- Então não é que pedi ao padeiro para me trazer mais pão para fazer a açorda de bacalhau na sexta-feira e o raio do homem só deixou o bastante para o gasto do dia?
- Diga lá, então, quantos pães precisa?
Enquanto ia ouvindo a senhora Aparícia, pegou no telefone e ligou para a padaria e recomendou que fizessem a entrega até à hora do almoço.
- Pronto! Já está resolvido. Mais alguma coisa?
- Ó senhora Dr.ª, a senhora já me conhece… Eu cá não sou de intrigas mas…
Angélica já sabia o que aí vinha… A mesma história de sempre, que o padeiro roubava no peso do pão, que isto e mais aquilo… A senhora Aparícia era parente do dono da outra padaria de 4 Montes e passava a vida a descascar no fornecedor do lar.
- Pois é… Mas olhe que os nossos velhotes gostam muito deste pão…
Angélica lá conseguiu que a cozinheira voltasse para o seu lugar, lembrando-lhe que era capaz de serem horas de começar a assar os marmelos para a sobremesa.
A senhora Aparícia era assim… Bom coração, sempre disposta a dar uma ajuda, mas quando embirrava para um lado, não havia nada que a fizesse mudar de ideias.
Angélica aproveitou para dar uma vista de olhos pela lavandaria, para ver se a nova máquina de secar estava a funcionar bem.
Ia ela pelo corredor fora quando ao passar por uma das salas de descanso dos residentes, ouviu uma voz alterada.
- Pois… A senhora Arlindinha…
Entrou na sala. Sentadas nos seus confortáveis sofás, estavam sete senhoras. A televisão estava ligada. Como sempre! A senhora Arlindinha continuava a falar, cada vez mais alto…
- … só a mim ninguém me liga! Porque é que temos de ver sempre o mesmo programa? Então eu, que nem gosto nada deste marmanjo, tenho que passar a manhã a aturar isto?
- Tem bom remédio… Ou tapa os ouvidos ou muda-se!, ripostou uma das velhotas.
- Olha lá! Mas tu achas que o meu dinheirinho é menos que o teu?… Teu, como quem diz… Se não fosse a tua nora, nem cá punhas o cúzio… Que tu, de teu, não tens coisa que se veja!
Angélica teve que se meter naquela alhada. Antes que a discussão se aprofundasse e as coisas se descontrolassem… Todos os dias era a mesma coisa. Por isto ou por aquilo, porque a fulana não me dá atenção, porque só fazem as vontadinhas todas à sicrana… Às vezes, apetecia-lhe dar outro rumo à vida. Quanta vezes, chegava ao fim do dia, estourada como se tivesse andado com uma enxada na mão.
Já nem foi à lavandaria… Foi buscar o isqueiro e os cigarros ao gabinete e saiu…
- Vou fumar um cigarro!, disse à moça que estava no balcão da entrada.
O dia estava frio mas o sol brilhava num céu bem azul. Arrependeu-se de não ter trazido o casaco…
Acendeu o cigarro e ficou a olhar para o fumo, branco, que ficava a flutuar à sua frente…
A entrada principal do Lar, ficava mesmo em frente ao cruzamento. Estavam a instalar as lâmpadas dos semáforos…
Reparou no engenheiro Xavier que dava indicações aos trabalhadores. Ainda bem que o via. Tinha de lhe lembrar que ainda não tinham vindo arranjar aquele problema das infiltrações na garagem.
Angélica caminhou até ao portão, fez sinal à moça da recepção para accionar a abertura automática e, ao sair para a rua, viu que, ao lado do engenheiro Xavier, estava Pedro.
Pedro estava a ouvir, atentamente, Xavier quando percebeu que este se distraíra com algo.
Levantou o olhar e, bem à sua frente, estava Angélica.

(Estória, em capítulos, aos Domingos e Quartas)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

domingo, 21 de novembro de 2010

Livro dos Recordes Sexuais: a mulher mais satisfeita do mundo


Uma mulher pode ser bem sucedida na profissão, ser esclarecida politicamente, bonita, mau caráter, inteligente, fofoqueira, gostosa, magra, rica, pegadora de namorado alheio, etc., tudo isso, junto ou em combinações, lhe será perdoado, agora, experimente ela ser bem-comida e perderá todas as amizades que tiver ou supor ter. Nem as amigas mais zen, os amigos mais terapeutizados, agüentariam; a verdade é que ninguém perdoa a mulher plenamente realizada na cama. Aquele sorrisinho maroto no canto dos lábios a afrontar colegas de trabalho, digamos, numa segunda-feira de manhã ― suportar quem há de?

― Quando vou ter filhos?! Querida, minha idéia de sacanagem na madrugada não envolve mamadeira nem fralda, a não ser em dias de perversões mais bizarras... ― pela reação da amiga, percebeu que abrira demais a boca. Afinal, quem, no elegante escritório de arquitetura e design, poderia supor que fosse sexualmente feliz, ainda mais depois de nove anos de casamento com um jornalista cultural? A coisa toda começara há dois anos por culpa justamente dele, o marido, Talarico Berdinesque.

Críticos têm, como outras populações corporativas, uma distribuição em curva de sino no tocante à luxúria: vinte por cento de heteros ou homos de raiz, praticantes e apreciadores empedernidos dos jogos venéreos, e aqueles oitenta por cento de eternos indecisos que não sabem que apito tocam, não desocupam a moita, não saem de cima e só sabem foder mas é com a paciência dos outros. Talarico fazia parte desta maioria cinzenta, embora se destacasse como um proativo lambe-cu do dono do jornal onde trabalhava há vinte e um anos.

― Fia, seu Orixá pede uma obrigação ― dois anéis cinzentos cingiam os olhos de Mãe Catarina, olhos que não desgrudaram da tatuagem de um sol na mão direita dela enquanto mergulhava as suas numa cumbuca com água corrente, infusão de folhas de maçacá, corana branca e mel de abelha.

O que talvez seja mais certo dizer é que houve uma série de equívocos que começaram depois que, vencendo o receio de se deslocar sozinha noite adentro para o bairro distante do terreiro, resolveu que precisava apelar para todos os santos à disposição. De saída, antes que pudesse se explicar, a Ialorixá encasquetou que o problema era o chamego, a escassez de nheco-nheco, ao passo que ela queria mesmo era desamarrar as dívidas financeiras do casal. ― Ora ê ê, Oxum, Ora iê, iê! ― a mãe de santo puxou para si a urupemba de palha trançada com os dezesseis búzios por meio dos quais as poderosas entidades afroamericanas iam mandar sua mensagem.

As impressões do ritual voltaram-lhe em sonhos por meses: a galinha amarela, o pinto preto, a cabra e o cabritinho brancos, o cheiro do sangue mesclado ao do bolo de feijão com rodelas de ovo e cebola picada com malagueta, cebolinha e sal; o aroma acanelado do doce de banana prata, os pontos cantados, a gira, o baticum, os colares, brincos e pulseiras, as flores, o fumo, os incensos de perfumes cambiantes... Os sacrifícios da oferenda tinham sido pagos em dinheiro para as Iabás, a terrível “mão de faca” que mata os bichos, o “cargueiro”, que retirou o Ebó; mas restava um problema: o despacho precisava ser levado por mão de homem a uma queda d’água no meio da mata na lua crescente. A custo de muita teima e beicinho, Talarico aceitou fazer a entrega no sítio da família.

Preparou o banho de madrugadinha em casa, fez um café-tinta de forte para o marido, que ia pegar estrada, e trouxe as ervas trituradas para o box do banheiro: malva branca, vassourinha miúda, medalha, bem-me-quer, rosa amarela, baronesa e botão de ouro. Tirou a roupa puxando pelo avesso e largou-a no chão; depois de se lavar com sabonete, juntou os pés e levantou os braços, cantando para a sua santa de cabeça à medida que despejava a vasilha inteira sobre si. Naquele mesmo instante, o marido desistia da viagem a desoras e decidiu largar as tralhas numa esquina qualquer. Não estava para programa de índio, os deuses que achassem o que lhes era devido; que diferença faria o lugar da desova?

Não é improvável que um erro conserte outro, porém, o mais das vezes só faz piorar o que já era ruim. Parou o carro, retirou do bagageiro a tigela, apanhou as velas e dirigiu-se para a encruzilhada em forma de T; temendo ser reconhecido, incomodou-se com a presença de gente nas imediações (exagerava um pouco a fama que tinha), mas foi só acender a primeira vela que a moçada picou a mula rapidinho. Acontece que o Senhor das Encruzilhadas, assim como não curia bebida que passarinho não bebe, não fica sem entregar nada a quem de direito; Exu levou para a Senhora das Cachoeiras o que lhe era devido e esta achou de castigar o Talarico pela ofensa.

Foi o maior susto da vida dela: o homem que voltou para casa naquele dia não se parecia com o marido, melhor dizendo, falava como ele, comportava-se como ele, mas não era a mesma pessoa! Daí pra frente, toda a noite um outro chegava em casa; ninguém mais percebia isso, os porteiros do prédio, os amigos, os colegas de trabalho, ninguém notava ― só ela podia ver que recebia em sua cama um homem diferente todas as noites. Experimentou marcar um jantar com o chefe dele em casa, só para se admirar com a absoluta normalidade com que todos se comportaram apesar de estar ali um homem negro com o físico de um guarda-costas em vez da sua habitual cara-metade.

O Talarico, em si, não mudou nada, de tudo que se passava inconsciente, continuava igual a si próprio: uma pitada de Todorov, um cheirinho de De Man, duas mãos cheias de Barthes e Benjamin; no mais, o mesmo: seguia abominando secretamente a santíssima trindade francesa, Derrida, Lévinas e Blanchot, e, no fundo, tal como o patrão, abraçava as idéias de Harold Bloom rechaçando tudo que destoasse do cânone clacissizante. Já na parte da cama, quanta diferença, quanta fartura em diversidade e diversão! O esposo-corno-de-si-mesmo acabou por confessar a falseta e Mãe Catarina pôde lhe explicar que o feitiço não seria desfeito senão ao cabo de sete anos; mas que ficasse sossegada porque os Orixás atuam sobre o plano material e não no plano espiritual, ele voltaria ao mesmo leite-azedo de sempre. Mais cinco anos ainda lhe restavam e ela tratou foi de aproveitar.

Conheceu muitos corpos desde então, descobria anatomias inéditas, comparava pernas, peles, torsos e quadris, jeitos de se mover e se comportar no fogo da carne e no depois do repouso; em cada um desses desconhecidos havia sempre um segredo, que ora se revelava, ora se furtava a ela, havia transas carnudas, úmidas, baixarias indescritíveis, tempestades lamacentas, sexos molhados, tristes ou febris, homens magoados, eufóricos, mortificados, preguiçosos, espontâneos, sem destino, violentos, transparentes ou compactos, uns cheiravam a perfumes e outros a sal, alguns suculentos como um fruto, outros livres como animais selvagens, por vezes difíceis, intensos, transtornados, necessitados, alvoroçados, esquecidos, esfomeados, meigos, suaves, raivosos, lúbricos, frios ou arrependidos; em muitos admirou o prodigioso calor, noutros a coragem, a vaidade, a astúcia, alguns a abordaram com esquivas e cautela, ou tranqüilos como a baía escondida de uma ilha, a outros, desbravou com a fúria das conquistadoras, tantos os que a calcinaram com a secura dos desertos; muitos deitaram-se ao seu lado para dormir, menos foram os que a comeram com um “C” bem grandão, com uns fez amor, mas a maior parte a fodia com “f”, de furreca mesmo; houve quem adivinhasse seus desejos e a possuísse com genuína comoção, mas houve também os distraídos, os prudentes como cobras, os de bocas famintas, (apareceram até mesmo dois transsexuais e uma mulher!), corpos em desordem que buscavam nela ainda mais desordem, enfim, cada noite lhe trazia um arrepio novo, a perspectiva do assombro e da novidade. Mas não se pode dizer que o traía, a não ser uma vez, em que ele mesmo a levou a uma casa de swing. Numa sala semi-escura da boate Babilônia, amarrada a um estrado giratório, foi comida por doze desconhecidos; Talarico observava calado, à distância.

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 11

Aldeia dos Quatro Montes


(se desejar ler os capítulos anteriores clique aqui)


11

Pedro bateu a porta de casa e dirigiu-se ao carro, estacionado mesmo em frente ao café do pai. Reparou, então, que, ao balcão, estava o Senhor Director e uma outra pessoa. Já agora, aproveitava a oportunidade e resolvia a questão do convite para escrever no Mensageiro de 4 Montes.
- Caro Engenheiro, ainda bem que aparece. Estávamos aqui a analisar o impacto que a instalação daquele equipamento de regulação de tráfego vai trazer à nossa terra…
- … Equipamento de regulação de tráfego?!
- Não me diga que ainda não teve conhecimento deste surpreendente acontecimento?
- Mas, estão a falar de quê?
- O melhor é ires ver… Já agora, Pedro, com essa tua mania de não gostares de Sua Excelência, vê lá se não exageras no bota-abaixo, disse-lhe o pai.
- Pai, quem o ouvir há-de pensar que eu não posso com o homem… Tenho mais que fazer do que me preocupar com isso. Bom, mas afinal, o que é essa coisa de que falava o Senhor Director… Regulação de …?
Ana Luísa estava curiosa para saber o ponto de vista de Pedro.
- Estão a instalar uns semáforos no cruzamento ali acima…
- …?!
O rosto de Pedro transmitia uma sensação de espanto.
- Semáforos? Aonde…?
- No cruzamento junto ao Lar…
- E para que raio é preciso isso? Querem ver que, agora, em 4 Montes toda a gente vai passar a ter carro? Ah… Já sei! Sua Excelência, sempre tão atento aos velhinhos, mandou colocar os semáforos para eles poderem atravessar a rua com segurança…
Esta tirada provocou uma gargalhada.
- Ah… e também servirá para a miudagem da Escola… estais mesmo a ver a criançada a sair da escola, virem pela rua até ao cruzamento e esperar pelo sinal para atravessar…
- É bem visto… ainda não tinha pensado nisso, disse o Senhor Director.
Ana Luísa apreciou o sentido de humor, ainda que crítico, de Pedro.
- Agora a sério… Acha mesmo que se justifica?
- Parece-me que não… Não imagino quanto custará, mas não consigo ver justificação para este tipo de investimento…
Salústrio tentava, também ele, descobrir a jogada por trás daquele facto, tão inopinado.
- Senhor Director, quando é que são as próximas eleições?
- Não… Duvido que tenha algo a ver com isso! Ainda faltam mais de dois anos…
- Mas eu não me lembro de algum dia, alguém ter falado da instalação de uns semáforos em 4 Montes… Não há trânsito que o justifique!
Salústrio puxava pelas ideias.
- A XP, a empresa que está a fazer as obras, será que anda a precisar de ganhar algum?
O Senhor Director, sem abrir muito o jogo, porque senão lá se ia o artigo que estava a pensar escrever depois da conversa que tivera com o Engenheiro Xavier, informou-os de que não seria bem por aí que descobririam os motivos da Administração.
Pedro tentava encontrar uma alternativa, razoável, para a obra.
- O Senhor Director podia fazer uma entrevista a Sua Excelência… Não existe melhor fonte de informação!
- Não é tarde, nem é cedo! Vou já falar com Sua Excelência.
E saiu porta fora… Dois segundos depois, entreabria a porta.
- Caro amigo, volto já para pagar o cafezinho!
- Esteja à vontade!
Ana Luísa pediu um chá de cidreira e uma torrada. Pedro despediu-se e decidiu ir dar uma vista de olhos à tal obra.
Saindo do Largo da República, a rua da Boavista subia ligeiramente. O passeio, em pequenos cubos de granito, era suficientemente largo para, de onde em onde, acomodar umas árvores. Com o andar do Outono, estavam quase despidas de folhas, que se esparramavam pelo chão, voando com a ligeira brisa, fria.
Ao longe, mesmo no cruzamento, a labuta continuava. Já estavam colocados todos os suportes, nas quatro esquinas. Uma grua tinha elevado um par de trabalhadores.
O engenheiro Xavier acabava de sair do seu carro, um pouco à frente de Pedro.
- Caro colega! Como vai? Há anos que não o via! Dê cá um abraço!
Pedro e o Engenheiro Xavier foram-se aproximando do cruzamento, enquanto conversavam animadamente.


(Estória, em capítulos, aos Domingos e Quartas)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sábado, 20 de novembro de 2010

Me atrevo Drummond.

(A criação de Adão-Lewis Lavoie- Michelangelo)

Mundo mundo vasto mundo”
quanto mais encurto os caminhos
mais distante tudo fica

Não há lugar para Ulisses
Odisseias são vulgares
Homeros escrevem novelas
Helenas são carnes cruas.

Acrópoles desordenadas
Midas descontrolados
Narcisos tem mil espelhos
Tânatos mata à vontade

O individuo é o mote
vale tudo vale nada
nessa confusão danada
salva-se quem puder
ou quem dinheiro tiver

No meio da multidão
um olhar desnorteado
insano
desesperado
encontra o meu

“Mundo mundo vasto mundo,
Mais vasto é meu coração”

domingo, 14 de novembro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 10

Aldeia dos Quatro Montes


(se desejar ler os capítulos anteriores clique aqui)



10

Sua Excelência saiu do carro. Do outro lado, Luís fez o mesmo.
No cruzamento, mesmo em frente ao Lar de idosos, uma equipa de operários da empresa XP estava ocupada em colocar na vertical um poste metálico.
- Vá lá que, desta vez, a obra começa na data marcada, comentou Sua Excelência.
Com o capacete amarelo enfiado na cabeça, o Engenheiro Xavier dava indicações aos trabalhadores. Quando viu chegar o carro da Administração com Sua Excelência a bordo, começou a perceber melhor porque havia tanta pressa nesta obra que, na sua opinião, nem era das que mais falta faziam. Tinha tirado pessoal que estava a concluir uma reparação de uma conduta de água para colocar aqui.
- Como está Sua Excelência?
- Vamos andando… Diga-me… Quando é que isto estará a funcionar?
- Da nossa parte, ficará pronto em dois ou três dias… Depois, há que fazer as ligações eléctricas e instalar o software… Numa semana, no máximo, teremos isto a funcionar.
- Muito bem… Já agora, aquela obra que…
Sua Excelência e o Engenheiro Xavier afastaram-se… Luís, o assessor de Sua Excelência, aproveitou para apreciar os trabalhos.  Um camião tinha suspenso da grua mais um dos postes.
- Então, senhor Luís…
Luís virou-se para trás ao ouvir a voz inconfundível do Ti Zé do Quartilho.
- Grande azáfama vai para aqui… Já perguntei aos rapazes o que diabo andam a fazer… Não me diga que vamos ter em 4 Montes uns semáforos?
Luís pasmou que o homem algum dia tivesse ouvido falar em semáforos.
- Então Ti Zé… Sabe como é! Algum dia tinha de chegar a 4 Montes a tecnologia mais moderna…
- Pois sim… Mas aqui não há tantos carros assim… Tirando a hora da entrada da Escola e do Lar, isto é uma pasmaceira!
- Ora aí está, Ti Zé! Se há lugar que mereça este investimento é aqui mesmo.
Aos poucos, foi-se juntando gente. Em 4 Montes, a rotina estava tão bem instalada que qualquer coisa fora do habitual atraía as atenções de todos.
O Senhor Director dava largas aos seus dotes de fotógrafo. Com a sua bela máquina digital tentava encontrar o melhor ângulo. Apesar da idade, pois já andaria para cima dos sessenta, logrou que a grua o levantasse até bem lá cima.
- Obrigado, senhor Engenheiro… Consegui um vista completamente inédita! Aproveitei a ocasião e apanhei o Lar de um ângulo fabuloso… Vai dar uma bela imagem para ilustrar o meu próximo artigo sobre o Lar de Nossa senhora do Ó.
- Ó Senhor Director… Sempre que pudermos ajudar, estamos cá para isso!
O Senhor Director pegou naquela disponibilidade do Engenheiro Xavier, da empresa XP, Xavier e Pato, para sacar as informações pertinentes sobre a obra.
Quando já se preparava para demandar o ArcoBotante deu, de frente, com o Ti Zé do Quartilho.
- Então, bom homem, aproveitando o tempo para ver os outros a trabalhar?
- Com sua licença, Senhor Director, mas só trabalha quem não sabe fazer mais nada!
- Pois, pois… Você é que leva uma boa vidinha…
- Cada um sabe de si… e Deus saberá de todos!
- Olhe… Que me diz desta “coisa”?
- Ó Senhor Director… a única coisa que sei é que a ver tanta gente a trabalhar me deu cá uma sede… vou mas é à Ti Joaquina, a ver se ela me dá um quartilho daquele… do bom!
O Senhor Director riu-se e continuou a caminhada em direcção ao café.
- Caro Salústrio, já sabe da novidade?
- Em 4 Montes as novidades correm mais depressa que um fogo de Verão no restolho… Lá vamos ter um sinal do progresso! Semáforos em 4 Montes… Quem diria?
O Senhor Director foi tomando o seu café (bem curto…) enquanto a conversa corria.
Ana Luísa aproveitara para dar uma esticada de pernas. Pegara num dos muitos livros que António Augusto tinha na estante mas não estava com vontade de ler… Ao sair de casa, reparou num movimento desusado de pessoas e máquinas na esquina da rua.
Dirigiu-se ao ArcoBotante onde encontrou o Senhor Director e o dono numa animada conversa.
- O senhor Salústrio há-de concordar que 4 Montes precisa, diria mesmo, necessita de um toque do progresso!
- Lá isso é verdade… Mas, gastar dinheiro nuns semáforos… Acha que não seria mais bem gasto…
Ana Luísa julgou não ter ouvido bem.
- Queiram desculpar… Para que é que precisam de uns semáforos em 4 Montes?


(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.

sábado, 13 de novembro de 2010

ô disse eu

o fato é que estou cada vez mais desatento
cada vez mais bipolar
mais hipertenso
menos

conectado

a verdade é que não acredito
mais
na verdade
(desacreditei até do beijo francês)

não acredito mais em jornais
promessas de deuses
longínquos
ou vizinhos

só continuo vivo por esquecimento
indecisão
e uma praticidade mesquinha que me leva
a fazer sempre as mesmas
poesias

ao mesmo tempo em que acredito em tudo
(TUDO pode acontecer)
nada me apavora
mais

o fato é que não inventei a novidade
do milênio
permaneci quieto e resignado enquanto meu país
deixa
que homens e mulheres escrevam de uma maneira perfeitamente
controlada

as minhas palavras não funcionam
não são antenas da raça nem
antecipam
futuras gerações ou desenvolvimentos sociais
e técnicos

falta uma espécie de energia aquela
que sobra nesta época
desabrocham as gardênias
acres damas-da-noite
atenuadas pelas magnólias manjericos
e jasmins
______________________________________________

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Zoadinha e o Iluminado

Zoadinha. E dizer que ela descobriu o apelido que a homarada da vizinhança lhe pregara pelas costas só depois que foi trabalhar na casa do velho. A tia que pagava a faculdade do irmão falecera e os herdeiros em guerra cortaram logo o bolsa-escola da solteirona benemerente, de modos que resolveu pegar o turno da noite no home care do ricaço para completar as despesas. Casa de remediado, cai um copo, racha um prato.

― Zoadinha... mas gostosa. A coda do apelido os garanhões de subúrbio, evidentemente, não disseminaram... ― o velho era de falar tudo na bucha, ela, zero burra, devolvia jabs com cruzados, respondia ganchos com diretos. Entenderam-se desde o primeiro encontro.

Saía do trabalho às sete, chegava, dava um talento na casa, deixava a janta pronta e tomava uma ducha rápida antes de sair para a terceira jornada, das nove às seis. De dia era atendente na farmácia do bairro, a falsa magra do balcão; os marmanjos se revezavam em levar-lhe uma cesta provida de camisinhas, ky e comprimidos de levanta-pau só para vê-la no caixa, corando como pimentão enquanto fazia a soma, embalava e indicava os produtos na promoção.

― Faz um desconto do bom, porque ainda vou gastar no rolê com a mina. Mulher e carro, já viu, precisa de dinheiro e gasolina ― disse um.

― Esta casa parece uma caixa com paredes feitas de livros; muitos deles, você que escreveu. Pra quê? ― não era feia, o que é, é que, à primeira vista, o projeto geral parecia meio escangalhado; sobretudo as feições eram esparsas, distribuídas por um crânio alongado demais em que o osso extenso do nariz vinha até embaixo, alargando pouco ao aproximar-se dos lábios generosos. As pupilas, tinha-as fugidias e negras, aqueles olhos quirguizes de caboclo meio puxado a índio, o que os cabelos longos e escuros confirmavam, mas a pele desmentia com uma brancura sardenta e sujeita à ruborização constante.

― Qual deles você gosta mais Zoadinha?... Ah, muito perspicaz, é o meu preferido também; ganhei prêmios com ele ― acabara de completar noventa anos; era de estatura média, não fosse pelo cabeção desproporcional emoldurado por grossas sobrancelhas, nada haveria nele que fosse fisicamente incomum, nem mesmo a magreza que a idade acentuara. Viúvo, seis filhos e cinco netos; ficou morando sozinho no casarão ilhado pela deterioração do bairro. Por causa dos joelhos, não conseguia mais se levantar de cama ou cadeira sem ajuda; um pequeno exército de cuidadores orbitava em torno dele 24 horas por dia. Era considerado um gênio vivo.

O que nela também não colaborava era um começo de giba, conseqüência postural da timidez, que dava a impressão de encurtar o tronco, conferia um jeito de cambitinhos arqueados às pernas, além de empurrar para dentro uma bunda que mereceria o destaque da lordose. O velho catucava, chamava-a na chincha, por que acreditava ela ser dedo-podre no amor? ― Aos vinte e sete anos parece cedo, ok, comparada ao senhor sei que não é nada, mas já desisti. Sou que nem curva de rio, só pára tranqueira ― firmes e empinados peitinhos, somados à auto-ironia sarcástica derretiam o ancião.

― “Teomaquia, a luta contra o Deus do mundo e os deuses interiores”... É verdade que teve uma... visão? ― habitualmente iam até meia noite na prosa, raramente tinha trabalho de madrugada, embora às vezes ele se cagasse todo e aí era uma trabalheira dos diabos dar-lhe banho e trocar a roupa de cama. Fora que o coitado ficava pra lá de desconsolado no dia seguinte. O descompasso, cada vez mais acentuado, entre o corpo e a mente acabrunhava-o, sentia-se traído pelo arcabouço em desintegração enquanto o espírito permanecia cruelmente lúcido.

― Não foi uma visão apenas, porque outros sentidos estavam envolvidos. Senti o Deus que há dentro e fora de nós, fui do visível ao invisível, pulei da realidade subatômica, em que a noção de distância deixa de fazer sentido, aos confins do espaço, onde começa o umbigo do universo que contém este universo, e assim ao infinito; Zoadinha, conheci o sustentáculo do cosmos, a ligação de todas as coisas, o entrelaçamento do humano e da natureza, atingi a mais perfeita beatitude e o mais fundo desespero, onde o místico ultrapassa as aparências e encontra a verdade última, a unidade original em que Deus coincide com a realidade.

― Então foi assim que conseguiu criar a sua maçonaria? Ouvi dizer que só tem granfo lá... Agora, por que é que seus filhos não deixam o senhor aparecer?...

― Ser velho é virar papel higiênico: ou se está enrolado, ou cheio de merda. Por isso meus filhos me afastaram do dia-a-dia do meu instituto, como sustentar a figura de um fundador mítico, apresentando um homem que não anda nem limpa mais o cu sozinho?

― Só não entendo como o criador de uma seita pode falar nos seus livros que é preciso combater o Deus que existe em nós... o senhor é ateu?

― Não sou, nunca fui, religioso e nem fundei cabala nenhuma, sem embargo, não vejo como poderíamos nos livrar Dele, ao menos não definitivamente. Veja, durante a minha epifania não tive apenas um lampejo do que é o universo, mas também enxerguei como as coisas realmente funcionam neste mundo. Daí que passei a vender o único artigo de fé do homem moderno: eficiência.

― Fugiu da minha pergunta, para variar, vamos mudar um pouco, vou lhe ler o que escreveu: “assim como nos chegou, o relato da Criação é uma história mal contada, e toda história mal contada acaba por revelar muito mais do que gostaria”.

― Claro, olhe, quando duas criaturas se encontram, é quase impossível que a mais forte não devore, abuse ou explore a mais fraca. Vale entre animais, vale entre os humanos e Deus; não digo que Ele exista lá fora, no espaço sideral, acontece que, a partir do momento que a linguagem entra em nós, a violência se consuma. A ordem simbólica só entra no corpo causando grandes estragos; Geová, o grande verme, o grande Outro que me habita e me descentra de mim mesmo. A única ciência que a religião sempre vai precisar combater é a biologia.

― É arrepiante, o senhor diz que a Bíblia é a história de um estupro. Quer dizer então que nós dois aqui só nos respeitamos porque um não tem mais força que o outro?

― Pode apostar nisso. Leia o Bereshit com muita atenção, Javé cria animais selvagens e domésticos em pares de macho e fêmea e lhes manda frutificar e multiplicar; mas eis que faz exceção ao bicho criado à Sua imagem e semelhança quando leva seu rebanho para o Jardim do Éden, qual o motivo?, esquecimento, distração, lhe garanto que não foi...

― Só que vai uma grande distância afirmar que houve um abuso sexual no Paraíso!

― Um não, dois. Eva também entrou na dança. Atente para o fato de que o pecado original nada ter a ver com sexo, mas sim com o conhecimento; está lá, em Gênesis 3:21, “Eis que o homem se tornou como um e nós, conhecedor do bem e do mal.” Percebeu o “nós”? Deslize de tradução, interpolação tardia? Nada disso, Elohim sabe que não é o único tigre de papel no país das idéias platônicas. Ele cansara das vítimas, mas não do jogo; acompanhe a descendência de Adão e Eva, por que recusa Ele as oferendas do lavrador Caim, mas aceita as do pastor Abel?

― Eu li isso, é outro dos seus absurdos: Caim seria filho de Deus, Abel, de Adão... Já sei o que vai dizer, que Eva afirma ter possuído “um homem com a ajuda do Senhor”, antes de Caim nascer e que isto se repete com Maria e o Cristo, abandonado na cruz... loucura!...

― O fato de os padres não se absterem de atacar os petizes não é uma perversão, mas a reencenação xamânica de um ato primordial da divindade. Chamo-lhe a atenção para a simbologia: árvore, escada e cruz; a árvore do centro do Éden, a escada do sonho de Jacó e a cruz onde morre o Cristo são arquétipos da ligação do mundo sublunar com o supra-sensível, mas também embutem o conflito arcaico com a ordem divina, exemplarmente ilustrado pela luta de Jacó com o anjo.

― Sendo assim, o senhor está dizendo que Deus não é amor...

― Digo que não é só amor, porque há mais que isso em quem o conjurou. Zoadinha, pára de me chamar de senhor...

― Então, senhor, pare de me chamar de Zoadinha!

Alertada por um telefonema anônimo, Rosana, a filha que visitava o velho mais amiudadamente, descobriu que todo um tráfico se estabelecera no seio do improvável casal. Zoadinha vinha contrabandeando umas pilulinhas mágicas para espevitar o sábio geronte, peças íntimas dela foram encontradas nas gavetas do escritório onde se trancavam até altas horas. Demitiu-a sumariamente.

Uma equipe de médicos, incluindo geriatra, ortopedista, gastro e reumatologista, não chegaram a um acordo sobre o fenômeno: o velho passou a gemer dia e noite, uma jeremiada de queixas e dores se espalhando por todo o corpo. Dava dó de ver.

terça-feira, 9 de novembro de 2010


















Eu que vivi sem pátria
entregue
vaguei

um fantasma
sem rastros,
marcas

nada permanece na alma
cada dia
o vazio

exausta
durmo

domingo, 7 de novembro de 2010

Aldeia dos 4 Montes - Cap. 9

Aldeia dos Quatro Montes


(se desejar ler os capítulos anteriores: Cap.01 a Cap.05Cap.06Cap. 07, Cap.08)

9

Maria entrou com a tarte num tabuleiro de madeira que colocou na mesa ao lado da que Ana Luísa e António Augusto ocupavam.
- Humm… Que cheirinho!
A Ti Joaquina pegou na faca e cortou duas belas fatias.
- Ora agora, digam-me lá…
Ana Luísa cortou um pedacinho e provou.
- Minha senhora… O sabor ainda é melhor do que o aroma…
- Aqui a Ti Joaquina é uma cozinheira de mão cheia… Mas, sinceramente, ainda não conhecia esta sua especialidade.
- Pois, senhor Doutor Juiz… Só a posso fazer quando as camoesas estão no ponto certo!
Entretanto, o senhor Director e Pedro levantaram-se e pensavam ir tomar o café ao balcão…
O senhor Director fez questão de ir à mesa congratular a Ti Joaquina.
- Minha senhora… Divinal! Puramente divinal a tarte de hoje.
- Ó senhor Director… Que até fico corada de tanto me gabarem… É uma tartezinha, não tem nada que saber… Será das camoesas que este ano estão muito cheirosas.
António Augusto secundou os elogios do senhor Director e convidou o senhor Director e Pedro a tomarem com o café com eles.
Como ainda não se conheciam, o senhor Director apresentou Pedro a ambos.
- Folgo muito em conhecer o filho do senhor Salústrio. Seu pai já me tinha falado de si. Como estão as coisas em Angola?
O senhor Director aproveitou para entabular uma conversa com Ana Luísa. No entanto, o tom que Pedro usava para falar levou-a a ficar atenta.
- … e acabou por falecer, em Setembro.
- Meus sentimentos.
Por momentos, o silêncio instalou-se à mesa.
Maria apareceu com os quatro cafés. E a conversa, voltou.
- A Ti Joaquina tem uma mão para esta tarte…, referiu Pedro.
- Para mim, que estou em 4 Montes há dois dias, tem sido uma sucessão de descobertas… A torrada de pão centeio com mel… este almoço… Vocês têm aqui algo a que nós, que vivemos na cidade, muitas vezes não damos o devido valor. É uma pena que haja tão poucas pessoas a poderem usufruir destas coisas…
- Pois diz muito bem, minha senhora, inflamou-se o senhor Director. Se tivéssemos os meios para poder divulgar a excelente qualidade dos nossos produtos, certamente, 4 Montes apareceria a letras de ouro nos destinos turísticos.
- Minha senhora… Acabou de tocar num assunto que o senhor Director adora, disse Pedro.
- E faz ele muito bem… Ou não concorda?
- Quer dizer… Eu também acho que era necessário haver mais promoção e divulgação de 4 Montes. O problema não está aí… Por exemplo, onde estão as camas para receber os visitantes? Quantos restaurantes, dignos de serem indicados, existem?
- Ora…, interrompeu o senhor Director. Roma e Pavia não se fizeram num dia… Em começando a procura, a oferta teria que se ajustar…
- Pois… E qual a capacidade da oferta crescer? Quem iria investir? Mesmo na produção agrícola, o envelhecimento é galopante. Os jovens não querem ficar amarrados a 4 Montes. Acham que, aqui, as possibilidades de crescimento são diminutas.
- Mas, diga-me… Então o que o trouxe, de novo, para 4 Montes?, questionou António Augusto.
- Preciso de tempo para repensar a minha vida… E, para isso, 4 Montes é insuperável.
Ana Luísa não alcançou, imediatamente, o que Pedro queria dizer. Mas pensou que também ela estava naquela mesma situação.
- Concordo, plenamente, consigo. Eu própria estou aqui em circunstâncias similares… Felizmente, o meu bom amigo António Augusto teve a amável ideia de me convidar a conhecer esta terra. Pela forma como ele se referia a 4 Montes, já tinha percebido que algo de diferente haveria aqui… Mas a realidade consegue superar o que tinha imaginado…
- O meu convite teria sido feito mesmo que 4 Montes fosse algo menos bom… No seu caso, e se me permite, o que a Ana Luísa mais necessitava era de uma mudança de ambientes.
- Tem razão… Bem precisada estava disso.
Pedro percebeu que o rumo da conversação tinha deixado Ana Luísa pouco à vontade. Ele próprio se sentiu tocado por essa sensação de desconforto.
O senhor Director achou que estava na hora de intervir.
- Posso sugerir um digestivo para terminarmos com chave de ouro este nosso encontro?



(Estória, em capítulos semanais, aos Domingos)
Aviso: qualquer semelhança com nomes ou situações reais será mera coincidência... Esta é uma obra de ficção, resultado da pouca imaginação do autor.