terça-feira, 30 de setembro de 2008

por que acredito em sonhos (yes, we can)




possibilidades que não devemos descartar liminarmente:




a) sabemos que estamos acordados quando estamos acordados, o que não temos certeza é se estamos sonhando quando estamos sonhando


b) mente-se na maioria das situações, e na maior parte do tempo, logo, se alguém parece lhe estar dizendo a verdade, deve ser algum “experto”


c) se você não se lembra de algo, é porque não aconteceu


d) as pessoas trocam de corpo quando se tocam


e) um lugar em que nunca estivemos tem grande chance de não existir


f) as cabeças das pessoas voam quando elas estão sonhando, distraídas ou zangadas


g) as coisas não existem quando não estamos olhando para elas


h) os fatos aterradores: entre 1980 e 1990, mais de 120 homens adultos saudáveis da etnia Hmong das montanhas do Laos morreram misteriosamente enquanto dormiam, no que ficou conhecido nos anais médicos como Síndrome da Morte Noturna Súbita Inexplicável. Alguns sobreviventes descreveram ter lutado em sonho com espíritos e ter sentido uma forte opressão, como se alguém estivesse sentado sobre seu peito.

domingo, 28 de setembro de 2008

recontro

Ilustração de L.B.

Pode parecer ridículo, mas a primeira coisa que ela fez quando o viu foi gritar, gritar como se mais ninguém no mundo houvera, como se estivessem sozinhos, como se a avenida fosse uma ilha e não fossem quinze para as três da tarde. Ele se esforçou para entender o que ela berrava feito louca; a experiência do insólito ficou sendo um nome a mais entre ambos, talvez uma forma de intimidação de fêmea assustada. Ela era assim e não havia como obrigá-la a desduplicar a aparência em essência, ou traduzir atos em palavras; conhecia-a o suficiente para não lhe pedir tanto. Cumprimentou-o sem abraçar. Notou que estava mais magra, mas não teve como dizer-lhe.

Depois, mais recomposta, quase chegou a lhe pedir desculpas por aquela reação ― não tinha pensado, apenas viera aquela coisa insensata, imensa, dentro de si, aquele eco da supremacia real da natureza na sua alma fraca de selvagem. Sabia já que ele ia procurar um território neutro, um café, uma lanchonete, em que ambos ficariam próximos fisicamente e decentemente contidos pelo gestual convencionado. Como era abnegado! Jamais aceitaria que certos encontros não são iguais aos outros, que certos lugares são investidos de divindades e demônios. Um homem é, antes de tudo, um transformador de angústia em explicações, conformou-se.

Ofereceu-lhe o braço, recusado, para atravessar a rua em direção a uma calçada onde houvesse transeuntes menos assustados e os olhares não estivessem fixos neles. Estava atarantado. Pensou em sugerir alguma coisa, mas deixou-se levar pela caminhada e a conversa que fluía aos solavancos, temendo uma interrupção embaraçosa. Evitava instintivamente as reticências dela, que podiam durar minutos e tinham o dom de mergulhá-lo no puro desespero. Irritava-se com o poder que a mulher ainda mantinha sobre ele, mesmo passado tanto tempo; era como se não houvesse um lá fora para além deles, e mesmo a mera representação desse ‘lá fora’ ia ficando mais e mais difusa.

Ela começava a sentir a velha diferença que os separou desde sempre: parecia que falavam duas línguas alienígenas. Ele discorria com imagens, pictogramas coloridos, as sentenças enormes e cheias de metáforas ardentes; ela, do seu lado, parecia um lençol freático a escorrer nas entrelinhas, desejava que ele parasse de escutá-la com tanta atenção e tomasse suas mãos e as beijasse, em lágrimas. Pedia-lhe uma cota de absurdos com o tempero das delicadezas de outrora, pedia-lhe, em pensamento, um mundo que não fosse tão eterno e sem saída. Que nada, ele só via a beleza das coisas belas, só o surpreendia na adoração do que comove todas as outras criaturas.

Ela, mais do que qualquer outra, o lembrava do abismo que há entre ciência e poesia; detinha-o antes que pisasse numa calçada cujo cimento carcomido desenhasse um arlequim, uma clave de sol ou uma lixia. Tudo para ela podia ser outra coisa. Sentia-se irrefreavelmente loquaz, falava atropelando as deixas, interrompia o caso engraçado que tinha começado a contar, ofereceu-lhe chicletes que não tinha no bolso. Foi salvo por um amolador de facas cujo apito pararam para ouvir. Já tinha se conformado em não saber a direção que seguiam, adivinhava que perguntar um rumo seria recebido como uma traição por ela: “Você nunca pode aceitar algo em si mesmo, uma intenção que transcenda o sistema”.

De quando em quando o braço dele a tocava, na cintura, no ombro, aflorava seus cabelos como uma superfície de lago, abria espaço nas planícies desertas que haviam se formado na ausência. Percebia que o corpo tem a sua própria memória, suas regras de ouro, seus espantos e diferidos, que não poderiam simplesmente pular etapas; algumas coisas talvez não fossem recuperáveis, o que era triste, mas o recenseamento das lacunas não lhe parecia tão melancólico naquele momento, havia nela a alegria líquida como se dá quando descobrimos no meio de um livro uma carta escrita para uma dor já esquecida. A conversa transcorria na separação que se aloja entre conceito e intuição, tentando em vão cobri-la, sem nunca deixar, no entanto, de girar em torno dessa tentativa. Ela precisou refrear a vontade de o ensinar a pular.

A princípio, não quis deixar muito claro que havia sentido a falta dela, só que se deu conta de que ficaria falto de assunto; no final das contas, do que falam os amorosos? Não se pode amar sem acreditar em feitiçaria, imitação, coincidências estranhas e desterro; iria lhe contar das suas brigas com o mundo? Não conseguia voltar à textura do profano, não lhe apetecia o banal, acreditava até que podia sentir a condensação de eletricidade em torno da respiração dela, na verdade, gostaria de engarrafar o ar que ela soltava bem à sua frente. Teria uma bombinha de asmático para as noites de sufocação que sabia estarem para chegar. Quem tem somente a fé, por isso mesmo não tem mais fé. Agora preocupava-se em como deixá-la ir, como se refazer perante os órgãos oficiais, o trabalho, os amigos, a pátria. Ficaria tudo igual depois disto?

Não, ele já não deveria se lembrar de mais nada, tão seguro de si, tão assertivo. Poucos homens que conhecera pronunciavam tão bem a palavra ‘indignação’, poucos se dirigiam a ela de forma tão insistente por meio de acenos quase imperceptíveis; ele a olhava com violência e irracionalidade, mas não parecia se dar conta disso. Por pouco não o perdoou por tamanha displicência. Esse patente auto-contentamento dele em ter respostas para tudo, o condão de transfigurar a negatividade em redenção, teriam seus notórios defeitos refluído a capacidade de afrontar o perigo ― será que ainda lhe sobrara coragem para arrancar dela um beijo à força, aqui, no meio da rua?

De repente, deu-se conta do perigo, tinham entrado na região confessional, falavam dos outros, de outros amores, ovos de chupim que invadiam o ninho alheio. Achou que tinha ido longe demais, seu sentimento coisificado, sugado em um processo que transcorria por conta própria ― competiam em sinceridade para magoar um ao outro. Precisou de várias ruas para se localizar, propor uma trégua, tremoços, um chope. A digressão não era proibida pelas regras tácitas de ambos, apenas tinha sido intempestiva, uma tagarelice sem sentido. Acabavam de cair no detestável clichê: homens mentem para mais, mulheres mentem para menos. Odiava o distanciamento do pensar com respeito à tarefa de ordenar o fatual, a saída do círculo encantado da existência para a descrição dos afetos. Aí, falar é sempre mentir.

Não há lugar onde a inteligência dele não possa entrar, mas lá onde alcança o conhecimento, eu não vou estar. Vou pretextar uma ida ao banheiro e sumo, a mais clássica saída das mulheres fatais; que diabos pode estar querendo neste boteco que a turma dele freqüenta? Que fique com as suas olhadelas em volta, sua intimidade forçada com o garçom, a pose cool de dono do pedaço. Babaca! Todo esse conversê para chegarmos na esquina conhecida, pensa que não sei que aqui ele está seguro? O menino feliz com seu achado, a cantada eficaz que todas caem, a batida certa, a melodia que pode sacar do violão a cada vez que precisa impressionar as gatinhas; é, o terreiro conhecido faz o galo valente... Vou por um fim na brincadeira, chego na mesa, dou uma desculpa e raspo. Chega de viver no passado, de dar chance ao que já teve a sua chance. Vamos lá, espírito e finesse, dar o fora com elegância é a verdadeira arte da fuga. Getting into trouble and out of it.

Quando voltou, o por do sol atingia em cheio a mesa, banhando ambos numa luz irreal que os fazia piscar os olhos; brindaram, ofuscados. A noite não ia demorar.

Enterrar o corpo

Foto de Yasna Yanes

“La force poétique d’un mot reste incalculable, plus sûrement encore quand l’unité d’un mot rest celle d’une composition inventée, l’inauguration d’un nouveau corps. Plus sûrement encore quand la naissance de ce corps verbal donne son premier mot au poème, quand ce premier mot deviant le verbe que vient au commencement” (Derrida, Poétique et politique du témoignage, p. 16).

Na semana passada, enterramos Miriam. Ao que tudo indica, morreu. Não nos falará mais, não jogará mais cartas, não nos olhará mais com ternura, tenho dúvidas se não poderá mais escutar.
O que é isso, afinal, morrer? É curioso como os vivos, tão vivos, passem logo para a questão dos mortos, antes de se questionarem vivos. Façamos, só para variar, a questão contrária: o que é isso, afinal, estar vivo?
No enterro de Miriam, dezenas de desesperados queriam falar, falar, sobre qualquer assunto. Qualquer coisa que evitasse seus silêncios. E precisavam ser vistos, os vivos, corpo visto vivo.
Não há vazios possíveis no corpo dos vivos, quando há, o corpo logo trata de preenchê-los, não sem antes desesperar. Daí tantas palavras, tantos olhares e testemunhos, ninguém pode morrer para o corpo morto dos vivos.
Bem por isso, um filósofo inventou a história da alma, eterna. Qualquer coisa que escape, no corpo único dos tão vivos, da morte. Uma alma que não se veja, uma alma que não se diga, senão, por enigmas.
Continuo sem saber, onde está a Miriam sem corpo? morta? ou, viva alma eterna? Livre como sempre esteve, sem se preocupar com o que dizem. Viva como sempre esteve, fora do corpo morto dos tão vivos, sem poder ser vista.

sábado, 27 de setembro de 2008

quando a revolta é inútil, a mascarada do sagrado


um discurso que denuncia as injustiças, a opressão
e a ideologia dominante
torna-se ele mesmo ideológico (insidiosamente, aos poucos, contra suas melhores
intenções)
o GRITO
inarticulado
corporal
(infra-gesto)
sem Quaresma ≡ sem Carnaval


A reclassificação de todos os elementos
Terra. Água. Fogo. Céu.
reunidos em desordem contra os homens
Meios de comunicação, TV, rádio, satélites, internet
transmitem 24 sobre 7
por que tantos dizem não ser capaz de ouvir?
Ouvir
Compreender
Reconhecer
Aceitar
somente destruindo todos os poderes e leis
] a Eternidade não nos dá repouso [


somente a vinda de um sábio-louco recupera
a noção de Vida sagrada
Deus, Iavé, Allah
irão guerrear entre si e se entredevorar a fim
de que renasça o amor virginal e a sexualidade monstruosa


RENASCER ATÉ À MORTE


recuso a concepção de pai e mãe
sociais
só a biologia ― batalha perdida de véspera ―
salva


recuso a socialização dos
lactentes
a interpenetração estatal da ordem sem classes
bem como a Utopia do amor materno


do lado mulher,
a infâmia banal do poder impotente
do lado homem,
uma máscara hierática, um artifício barroco
Desmedida. Ostentação. Metamorfose.
Uma vida é unidade perdida
tecida de escândalo e vigor e exercida no seio da família mitológica
dos homens-teatro
e das mulheres-travesti


A imagem é, não significa
poesia realizada
o rei tem orgulho e consciência,
mas seu organismo de criança sofre
de uma angústia indefinida


sentir a unidade profunda das coisas é sentir o caos
reis suportam mal a coroa
pois a ninguém sai barato tornar-se
ego


a anarquia é um ato de rigorosa lucidez
contra a encoberta anarquia vigente
modo de combatê-la
com os próprios truques

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

a Bolha, a Bolsa e o Virgem Again®




Nasci, cresci, vivi ― e vivo ainda, até onde sei ― na Bolha. Uma das características mais salientes da Bolha é que ela não é visível para quem está dentro, pelo que demorei a saber da existência dela. Já para os que estão do lado de fora da Bolha, o problema mesmo é ser invisível. Havia aquele filme com o John Travolta, “O Rapaz na Bolha de Plástico”, ou clássicos como a “Bolha Assassina” com o Steve Mc Queen, mas nem assim a ficha caiu de imediato.

A Bolsa e o Virgem Again® ― assim mesmo, misturando inglês e português ―, também só descobri mais tarde na vida, na adolescência para ser mais exato. Naquele tempo havia todo um florescente mercado negro de revistas de mulher pelada, entre as quais as suecas eram as mais “liberadas”, com um nível de sacanagem comparável ao de uma novela das oito atual com problemas de Ibope. Porém, era nas similares nacionais que se via, às vezes em página inteira, os anúncios da pomada (vaginal?, peniana?) Virgem Again®.

Ao menos na minha lembrança, a embalagem do tal creme era azulada, com estrelinhas e letras brancas que alardeavam a promessa de retorno às primícias de Vênus. As estrelinhas, admito, talvez sejam cabriolas da memória, mas o causo é que, naquele então, desvirginar (se) era questão bem mais premente do que o contrário, de sorte que nunca encontrei quem houvesse experimentado as virtudes “revirginantes” do miraculoso produto.

Incrível que para abordar um assunto da moda me ocorram histórias da época em que os animais falavam e duas superpotências, EUA e URSS, disputavam o mundo. Nada restou daqueles anos dourados: animais, superpotências, EUA, URSS e, quanto ao mundo, bem... Pode ser que, como no caso do ungüento prodigioso, a Bolha e a Bolsa sejam entidades ao mesmo tempo corriqueiras e misteriosas, ou seja, tão fáceis de discernir em seus efeitos, quanto inacessíveis em seus mecanismos recônditos.

Prima facie, diria que a Bolha é o duplo da Bolsa, tanto é assim que ambas são, ou pretendem ser, cassinos virtuais que “precificam” tudo aquilo que interessa e todos aqueles em quem vale a pena APOSTAR. A Bolsa é o templo da verdadeira e única religião do ser humano: o jogo de acumulação, circulação e destruição de riquezas. A Bolha faz o mesmo com pessoas. Bolha e Bolsa confundem-se necessariamente, uma vez que atafulhar pessoas e coisas no mesmo balaio é a vocação atemporal de ambas.

A Bolsa e a Bolha têm andado ultimamente meio perrengues, mas não é doença de morte: o remédio é amargo, mas será pago pelos basbaques de sempre, papagaios de pirata que se acotovelam em volta do palco da jogatina. Por um tempo, Bolha e Bolsa vão aprender a viver descentradas, murchinhas, até mesmo um pouco vigiadas, o que, no fundo, só lhes fará bem: “emergentes” serão “alavancados”, o burguês de hoje vai ser o aristocrata de amanhã, a virtude pagará o habitual tributo ao vício e o resto o emplastro resolve. Lavou, tá virgem ― again!

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Oráculo


O senador Reichmann, bem cotado para as eleições daquele ano na Argentina, resolveu procurar um oráculo às escondidas. Havia ouvido falar bem do homem, que detestava propaganda e fazia questão, inclusive, de manter algum anonimato. "Melhor", pensou. Estaria menos exposto.
Ao chegar, pediram-lhe que aguardasse um momento numa pequena antesala. Ao entrar, o médium já estava, como diziam, "tomado", cumprimentando-o com um arreganhado sorriso e um aperto de mão forte e disposto. "Você quer ser rei? Qual é sua coroa?" O senador calou-se constrangido, sem entender a pergunta, pois o máximo de adornos que a cabeça de um presidente argentino ostentava, naquela época, era o quepe de militar.
"As pessoas que quer governar. Elas são sua coroa. Por dois motivos: para que estejam sempre em tua cabeça e para que estejam sempre acima de ti." Fez uma pausa. "Se governar com teus amigos no peito, esta nação estará hodida. É só, por hoje." E despediu um confuso senador.

Como se sabe, este não ganhou as eleições.
(sonho de 23/9/08)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Como um balé mecânico, ao compasso da repetitiva sinfonia dos metais que rangiam

Elle se glissa au-dehors, en disant tout bas,
pour elle-même:"Je reviendrai..."
Au hasard, dans la nuit, où va-t-elle?

As flores não envelhecem honestamente como as folhas,
lambisgóias maquiadas demais,
até as mais etéreas desbonitam no centro, onde a mancha felpuda
dos órgãos sexuais

(ah sim,
o pudor é a epiderme da alma, etc., etc.)

já que a gestação se passa na água
nascimento
o assunto é ar


No pretexto do seu esporte com as palavras
lá está o idiota
no trottoir do seu biscate com os afetos
lá está o poeta
coçando o gatilho da Glock, encafuado dias e noites na campana absurda
lá está o idiota
dormindo na pontaria da AR-15
lá está o poeta
mirando na superfície turva-essencial-lascivo-opaca-flamboyant
do ser

domingo, 21 de setembro de 2008

HOMEMMOENDAHOMEMMOAGEM

Foto de Marceela Vila

Um senhor é escravo de seus criados, um rei dos seus súditos, um ídolo dos seus fãs, um poeta das suas obsessões, um monstro das suas taras, etc. ― tudo isto é bastante conhecido. O que faz da servidão um fenômeno peculiar é aquela sua faceta humilhante que especifica que o capataz deve ser oriundo da casta servil. Por exemplo, é necessário que o pior inimigo de uma mulher seja outra mulher. A manumissão do feitor não é um prêmio, não dignifica e nem liberta; é antes de tudo uma insígnia da coerência interna do sistema, funciona como um lembrete irônico, um corolário da sua lógica. O preposto forro e alçado ao poder de polícia generaliza e magnífica o alcance da opressão, pois que universaliza uma exigência fundamental da dominação: ninguém pode ser inteiramente livre.

O traficante na favela cumpre uma dupla função social: gerencia o droga-delivery para os abastados e mantém o povão na linha.

os laços selenes de Idoru



Então me digo:
“acabo de ouvir um grande sino”
pelo tamanho do objeto sonoro
vejo o que não vi


O presente ensina bem mais que projetos futuros


Assim certos cromos
em que verdes, vermelhos, lilases, azuis, matizes
que exalam aromas compostos


Os vestígios do futuro apaga-os o passado
Perguntar para quem o destino?


Acendo um fósforo molhado de ciúmes
alguém me pede um beijo ― é Carnaval
Sigo cabreiro na rua é quarta-feira
tenho uma carta dela no bolso
que vale muito mais do que nós dois
realmente vivemos
muito sós


Procurara fundar uma casa primeira
que tivesse acesso à superfície do mundo
e um contato com o negror das regiões
definidas-indefinidas-veladas-reveladas-mágicas


Uma percepção construída pode guardar além de si
princípios que lhe sejam estranhos?


Never explain, never complain


traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo
verdade, luta, lealdade, humildade, solidariedade
decisão
Falar, agir, são embaixadores da vontade
portando uma mensagem fatal:
Rosenkrantz e Guildenstein


Tome-se, por exemplo, a forma:
inconsciente auto-retrato
em meio a um ambiente de complexa sofisticação
fragmentada em segmentos cambiantes
a conjuntar frêmito e traço, gesto e estrutura
tesão e terror


Sigo cabisbaixo indisciplinado
a receita vitoriana de não dizer, não transparecer
não sentir, não perder os estribos, não ligar para
o timbre do sino
a ressoar
grave
distante


Procuro-te sem nunca ter visto o teu rosto
numa poça d’água
purificada da minha tristeza que diz: “Nunca mais”
Por que foi que cheguei quando os seus desertos já estavam fechados?


O sonâmbulo com o seu infinito
bailando particular engonçado inocente
e eu creio que seremos brancos e feios
amontoados como pedras
feitas de momentos esparsos como a pontilhar o fortuito
giroflê, giroflá

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

OLD AGE ECHOES

Cena do filme "Cachaça de burguês"


Let every one be mock’d
left unanswered
lest the love that waits in you pass to other spheres


A backward glance o’er roads not taken
at last I see
The title is settled beyond
recall
and I finally accept
No one here gets out alive


Let none evade
spare nobody
let none asleep
for we must go on with our infatuations
advises unheard of
time makes others find their past in you
and your times
― in a while crocodile!


Decay’s not
just a matter
of body and soul
it’s the unrestful, ungraspable emancipation
of the sheer present…
For life relies upon
battle’s rage
For the genius of the West
rises out of a national spirit
and the privilege of a polished selected few


Life has no meaning
therefore
we better keep the extreme resort
at hand (or in mind)
as a frail means to maintain dignity

I hereby proclaim
autoptosis is my imaginary friend


There will be soon more churches than ever
They wait awhile
The camp, the drill, the lines of sentries, the prisons, the hospitals
A superior breed shall take over
And every man and woman will be his/her own priest

Decline is never accomplished
short of moral decay

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O despertador de Platão e os soníferos de Heráclito

Foto de Alessandra El Far

Em sua República, Platão, devoto de Apolo, vale-se da imagem solar para explicar nossa capacidade de enxergar as coisas. Para contemplarmos o que se vê, precisamos da visão, do que é visto e da luz do sol. Sem percebê-la iluminando as pessoas, podemos pensar que elas é que geram a luz. Em suas Confissões, santo Agostinho diz que só depois de enfrentar a perda de um grande amigo, compreendeu que o sol ainda estava lá, e que era ele que tudo iluminava. Ao tomarmos uma pessoa ou a nós mesmos como a origem da luz, nos prendemos ao ontem, considerando eterno o que nunca deixou de ser temporal. Donde a luz do sol nos liberta e nos faz acordar, e assim devemos permanecer, até o momento que possamos deixar de vez o sonambulismo dos mortais.
Quase tudo é o contrário em Heráclito, devoto de Ártemis, deusa do jogo e da caça. Mortal e imortal, noite e dia, sono e vigília, tudo é reversível para ele, e a eternidade é uma criança brincando, gostando de ser. Ao invés de ficarmos bem acordados, à espera do que possamos ver, melhor rastrear no invisível, onde já não é possível distinguir sono ou vigília. Aceitar novamente o sonho? Há uma diferença entre dormir por cansaço e dormir por desejo de amar. Os soníferos de Heráclito não nos levam ao sono alienado, mas ao faz-de-conta. De todo modo, a brincadeira de Ártemis tem suas regras, tem seu preço, explica Heidegger no seu estudo sobre Heráclito, para entrar no jogo do amor é preciso aceitar o sacrifício de quem diz e crê: por você eu morreria.

sábado, 13 de setembro de 2008

os maravilhosos serviços que cuidam de nós...


Sci-Fi surreal: estamos cheios das máquinas razoáveis, do siricotico das engenhocas, das arquiteturas moles; cibernéticas sencientes no ápex da neurastenia, do desfalecimento. (Se nos parecemos mais e mais aos autômatos é que o cachorro se parece com o dono.). Sistemas sofrem as agruras da inteligência enquanto (porque) falham ― estes os fatos. Trecos que desabam sobre si mesmos como se tivessem alma! A convergência traz adventos técnicos, as multicoisas (a camisinha musical, p. ex.). Lava-louças com o autêntico sexto sentido: objetos que sentem, se adaptam e controlam suas funções, melhorando o próprio desempenho. Por uma pequena fortuna, um chuveiro que deixa a água maior, mais leve e macia. O ruído branco da cidade secreta
uma camada de nano-circuitos integrados,
novíssimas midiopatias adestram infra-signos,
nos hipermercados cada gôndola mira um neurossinal específico,
enquanto isso,
polígrafos registram espectros de reis barbudos
.

Porque o novo mundo é play
(mas também: Ctrl+Alt+Del).

TRANSVALORAÇÃO (repetia o companheiro Nietzsche)


se cada um é sabido à sua maneira
então por que os grupos são tão estúpidos?


a massa é um multiprocessador de inteligências
e também uma motoniveladora de singularidades


uma república de espíritos livre-pensadores soa hipócrita
como uma racionalidade que dispensasse um modelo dominante


acreditar nos produtores de ciência, filosofia, literatura e belas-artes
só ignorando a notória (e constitucional) cafajestice dos intelectuais


a cauda longa de uma sociedade flexível, inventiva, amante da investigação
ou a nação fundada no ódio ao estrangeiro, numa revelação, um líder predestinado,
uma transcendência alienante?


abandonar os palácios, desertar o mercado, incendiar os templos, virtualizar a polis,
dispersar os signos,
porque não há caçador mais impiedoso, dominador tão implacável, nem território
comparável ao seu império




dizia meu tio que dirigir uma moto é andar num cavalo cego
já quanto aos humanos:
recompensa com prudência,
governa com vigilância,
castiga com firmeza,
vinho por medida,
rédea curta
e
porrada na garupa

QUALQUER MÚSICA

Qualquer música, ah, qualquer
Algo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônica, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida
Que eu não sinta o coração!
de Roberta Caparroz, extraído de "Minhas poesias favoritas que eu escrevi em um passado obscuro".

quarta-feira, 10 de setembro de 2008


"são apenas as pessoas superficiais que não julgam pelas aparências. o verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível" Oscar Wilde
Posted by Picasa

o homem é estranho a si mesmo como lhe é estranha a natureza, a qual não sabe nada dele


Devia ter, se muito, sete anos; era uma daquelas tardes sem fim

o elefante na savana desgarrado da manada

estava deitado de barriga para cima no assoalho

solitário, nenhuma aliá, ou filhote, ou amigo, ou rival, ia com ele

de tábuas corridas da varanda que dava para o pátio

estaca subitamente, o gesto é inconfundível:

da casa dos meus avós ― um dia de calor estival

está amedrontado com o que vê, dá meia volta

lembro que pensava no Universo infinito

sabe-se velho, mas não tanto: ainda não chegou a sua hora

e que entrei em pânico ao tentar imaginar o que haveria

aquilo é um cemitério E AQUELE ANIMAL TEM PLENA CONSCIÊNCIA DISSO

para além do que o pensamento podia alcançar

(...)

como são as coisas que não correspondem a nenhuma palavra?
é possível uma não-coisa?
Deus não existem?

domingo, 7 de setembro de 2008

toda arte começa e acaba no invisível


o fogo anda comigo




"Aqueles que se encontram na Terra vivem apenas de comida e se tornam comida no final." Taitirîya Upanishad

o fogo do esquecimento




"Shiva (princípio masculino) uniu-se a Shakti (princípio feminino), gerando Brama (o poder criador), que gerou Sandhyâ (aurora), jovem de surpreendente beleza. Ao vê-la, Brama teve uma ereção, concebendo em sua mente um ser maravilhoso, Kâma (eros) que com suas 5 flechas de flores inspira o desejo: alegria de viver (Harshana), atração (Rocana), ilusão (Mohana), langor (Shoshana) e destruidora (Mâhana)."

Não Faças Mandingas de Amor


Pelas horas da manhã
podemos semear as esperanças
a moça bonita diz bom dia
a moça triste às vezes sorri
não seja tolo amigo;
pois à noite as estrelas brilham
e se caso a dor te visitar
não faças mandingas de amor.
Ontem quando adormecemos
esquecemos nossos sonhos vãos
porém é bom gosto acreditar
esperando todo mundo feliz
eu igual a ti, planto rosas
do jardim de bem-me-quer.
Quando choro igual criança
sei que um anjo me acorda
meu coração quase balança
porque o amor existe
e nós carregamos na lembrança
que a vida insiste
Libni aos 22/08/2008

sábado, 6 de setembro de 2008

ROTEIROS DE VIAGENS QUE NÃO FAREI POR ENQUANTO


ou (quase) 1.000 lugares para conhecer antes que façam um pacote turístico:

1. a célebre boceta de Pandora

2. os paraísos artificiais dos Lunda-Tchokwe

3. os altiplanos de Mid-Lothian

4. live aboard nas ilhotas de Langerhans

5. tour guiado às escolas Leontinas

6. travessia da antiga ponte de San Luis Rey

7. parada para compras no Panthecnicon

8. percorrer a rota de Hanno, com escala entre as mulheres-gorila

9. cruzar o aqueduto de Silvius

10. trilha a pé até os contrafortes da pequena Hendaia

11. conhecer a terra de Padmasambhava no 5º ciclo, o de Maitreya

12. pintura corporal com os Omo, Rift Valley

13. a capela do castelo de Ambleville, no Vexin

14. reunião do Hell Fire Club, na abadia de Madmenham

15. viagem dos sonhos à desconhecida Kaddath

16. as cataratas de líquor do importante circuito de Papez

17. antes que desapareçam sob as águas: Ureparapara, Merig, Motlav, Vanua Lava, Aoba e Tuvalu

18. o golfo de Carpentaria e os artefatos dos Kairalag, Koko Yao, Tjongandji, Yir Yoront, Okerkila, etc.

19. visita agendada ao mihrab pelos caminhos de ma’rifat

20. passeio no canal de Havers e criptas de Lieberkühn ― coloridas pelo magnífico azul tripan

21. alvorada em Lorojanggrang com pernoite nos aposentos do vulcão
22. ... e a mais longa de todas: CL 1358+62

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

SPACCIO DELLA BESTIA TRIONFANTE

Detalhe de "Dilma, a feia sensitiva" de Valéria Calado


o destino não está mais escrito nas estrelas
ele está escrito em nossos genes



o corpo “plastinado”
tem seus fluidos substituídos por uma mistura
de silicone, resina epóxi e poliéster



as forças vitais,
substâncias supra-orgânicas,
abandonaram o último refúgio do sagrado
a máquina composta de outras máquinas



sob a forma de um deus
há um coração de fera
o potro escorregou, manso,
ligaram osso com osso, nervo com nervo,
dando sete nós no fio preto



o corpo/experiência não pode ser desligado
do corpo da linguagem
(aprendo a falar modificando a língua)



no matadouro
aquele que berrar é o boi
― mesmo que seja o homem


terça-feira, 2 de setembro de 2008

FAZ PARTE SER TRANSPARENTE (as máquinas celibatárias)

Oswaldo Montenegro, João Candido e eu; foto de Marceela Vila.

Uma nova máquina aparece sempre como o resultado de uma necessidade, real ou imaginária. É a conseqüência da concepção de alguém, traduzindo um mecanismo destinado a atingir um fim particular qualquer.


À concepção segue-se o estudo e a decisão sobre a montagem das partes; várias soluções são indicadas, as idéias iniciais são revistas e melhoradas e, finalmente, é escolhida a que parece ser a melhor.


A forma de uma máquina é uma combinação de princípios teóricos com indicações práticas, resultantes do bom senso e da experiência. Quando a teoria e a prática não concordam, uma das duas está errada.


Uma máquina transforma um tipo de energia em outro, ou utiliza essa transformação para produzir determinados efeitos. Os elementos mais comuns das máquinas são barras, engrenagens, ressaltos, bielas, eixos, árvores, conceitos, molas, elementos químicos, organismos, circuitos, etc.


A razão, que aplica princípios de coerência aos dados fornecidos pela experiência, é a máquina de todas as máquinas: ela pode evoluir, pode se transformar e também (convém não esquecer) autodestruir-se.


Para compreender não basta querer compreender, é preciso compreender a compreensão. Neste sentido, a explicação menos ingênua é aquela que tenta recuperar seu ponto inexplicável.


Existem tantas observações, tanta coisa desconhecida, que aquele que estuda as máquinas deve adotar a atitude de quem aguarda sempre uma informação melhor.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

de onde veio a LIBERDADE?

Foto de Jotacê Abreu

A liberdade nasceu com a magia, a poesia e o excedente de produção.


A cultura é o que dá forma e problematiza a vida comum de um povo.


Toda sociedade, portanto, deve perpetuar e se defender das criações de sua própria cultura.


Artistas ― dançarinos, artesãos, contadores de histórias, inventores, profetas ― não criam realidades sociais e, sim, possibilidades de existência.


Artistas não criam objetos, artistas criam por meio de objetos.


A criação não conclui o mundo, ela engendra mundos.


Por isso a cultura nunca estabelece um catálogo completo das atividades válidas para a sua construção.


Museus não foram feitos para levar a arte até às pessoas, mas para manter as pessoas longe da arte.


Sociedades vivem dentro de fronteiras definidas, a cultura move-se continuamente para fora delas.


Não se pode olhar para o horizonte porque ele é somente o limite daquilo que a visão alcança.


O horizonte não contém nada em si, apenas se abre para além das nossas limitações.


Nunca alcançamos o horizonte: deslocar-se em direção a ele é simplesmente descobrir novos horizontes.


Estar em um lugar significa tornar absolutos o número, o espaço e o tempo.


Ninguém sabe para onde vão os nômades.