domingo, 28 de setembro de 2008

recontro

Ilustração de L.B.

Pode parecer ridículo, mas a primeira coisa que ela fez quando o viu foi gritar, gritar como se mais ninguém no mundo houvera, como se estivessem sozinhos, como se a avenida fosse uma ilha e não fossem quinze para as três da tarde. Ele se esforçou para entender o que ela berrava feito louca; a experiência do insólito ficou sendo um nome a mais entre ambos, talvez uma forma de intimidação de fêmea assustada. Ela era assim e não havia como obrigá-la a desduplicar a aparência em essência, ou traduzir atos em palavras; conhecia-a o suficiente para não lhe pedir tanto. Cumprimentou-o sem abraçar. Notou que estava mais magra, mas não teve como dizer-lhe.

Depois, mais recomposta, quase chegou a lhe pedir desculpas por aquela reação ― não tinha pensado, apenas viera aquela coisa insensata, imensa, dentro de si, aquele eco da supremacia real da natureza na sua alma fraca de selvagem. Sabia já que ele ia procurar um território neutro, um café, uma lanchonete, em que ambos ficariam próximos fisicamente e decentemente contidos pelo gestual convencionado. Como era abnegado! Jamais aceitaria que certos encontros não são iguais aos outros, que certos lugares são investidos de divindades e demônios. Um homem é, antes de tudo, um transformador de angústia em explicações, conformou-se.

Ofereceu-lhe o braço, recusado, para atravessar a rua em direção a uma calçada onde houvesse transeuntes menos assustados e os olhares não estivessem fixos neles. Estava atarantado. Pensou em sugerir alguma coisa, mas deixou-se levar pela caminhada e a conversa que fluía aos solavancos, temendo uma interrupção embaraçosa. Evitava instintivamente as reticências dela, que podiam durar minutos e tinham o dom de mergulhá-lo no puro desespero. Irritava-se com o poder que a mulher ainda mantinha sobre ele, mesmo passado tanto tempo; era como se não houvesse um lá fora para além deles, e mesmo a mera representação desse ‘lá fora’ ia ficando mais e mais difusa.

Ela começava a sentir a velha diferença que os separou desde sempre: parecia que falavam duas línguas alienígenas. Ele discorria com imagens, pictogramas coloridos, as sentenças enormes e cheias de metáforas ardentes; ela, do seu lado, parecia um lençol freático a escorrer nas entrelinhas, desejava que ele parasse de escutá-la com tanta atenção e tomasse suas mãos e as beijasse, em lágrimas. Pedia-lhe uma cota de absurdos com o tempero das delicadezas de outrora, pedia-lhe, em pensamento, um mundo que não fosse tão eterno e sem saída. Que nada, ele só via a beleza das coisas belas, só o surpreendia na adoração do que comove todas as outras criaturas.

Ela, mais do que qualquer outra, o lembrava do abismo que há entre ciência e poesia; detinha-o antes que pisasse numa calçada cujo cimento carcomido desenhasse um arlequim, uma clave de sol ou uma lixia. Tudo para ela podia ser outra coisa. Sentia-se irrefreavelmente loquaz, falava atropelando as deixas, interrompia o caso engraçado que tinha começado a contar, ofereceu-lhe chicletes que não tinha no bolso. Foi salvo por um amolador de facas cujo apito pararam para ouvir. Já tinha se conformado em não saber a direção que seguiam, adivinhava que perguntar um rumo seria recebido como uma traição por ela: “Você nunca pode aceitar algo em si mesmo, uma intenção que transcenda o sistema”.

De quando em quando o braço dele a tocava, na cintura, no ombro, aflorava seus cabelos como uma superfície de lago, abria espaço nas planícies desertas que haviam se formado na ausência. Percebia que o corpo tem a sua própria memória, suas regras de ouro, seus espantos e diferidos, que não poderiam simplesmente pular etapas; algumas coisas talvez não fossem recuperáveis, o que era triste, mas o recenseamento das lacunas não lhe parecia tão melancólico naquele momento, havia nela a alegria líquida como se dá quando descobrimos no meio de um livro uma carta escrita para uma dor já esquecida. A conversa transcorria na separação que se aloja entre conceito e intuição, tentando em vão cobri-la, sem nunca deixar, no entanto, de girar em torno dessa tentativa. Ela precisou refrear a vontade de o ensinar a pular.

A princípio, não quis deixar muito claro que havia sentido a falta dela, só que se deu conta de que ficaria falto de assunto; no final das contas, do que falam os amorosos? Não se pode amar sem acreditar em feitiçaria, imitação, coincidências estranhas e desterro; iria lhe contar das suas brigas com o mundo? Não conseguia voltar à textura do profano, não lhe apetecia o banal, acreditava até que podia sentir a condensação de eletricidade em torno da respiração dela, na verdade, gostaria de engarrafar o ar que ela soltava bem à sua frente. Teria uma bombinha de asmático para as noites de sufocação que sabia estarem para chegar. Quem tem somente a fé, por isso mesmo não tem mais fé. Agora preocupava-se em como deixá-la ir, como se refazer perante os órgãos oficiais, o trabalho, os amigos, a pátria. Ficaria tudo igual depois disto?

Não, ele já não deveria se lembrar de mais nada, tão seguro de si, tão assertivo. Poucos homens que conhecera pronunciavam tão bem a palavra ‘indignação’, poucos se dirigiam a ela de forma tão insistente por meio de acenos quase imperceptíveis; ele a olhava com violência e irracionalidade, mas não parecia se dar conta disso. Por pouco não o perdoou por tamanha displicência. Esse patente auto-contentamento dele em ter respostas para tudo, o condão de transfigurar a negatividade em redenção, teriam seus notórios defeitos refluído a capacidade de afrontar o perigo ― será que ainda lhe sobrara coragem para arrancar dela um beijo à força, aqui, no meio da rua?

De repente, deu-se conta do perigo, tinham entrado na região confessional, falavam dos outros, de outros amores, ovos de chupim que invadiam o ninho alheio. Achou que tinha ido longe demais, seu sentimento coisificado, sugado em um processo que transcorria por conta própria ― competiam em sinceridade para magoar um ao outro. Precisou de várias ruas para se localizar, propor uma trégua, tremoços, um chope. A digressão não era proibida pelas regras tácitas de ambos, apenas tinha sido intempestiva, uma tagarelice sem sentido. Acabavam de cair no detestável clichê: homens mentem para mais, mulheres mentem para menos. Odiava o distanciamento do pensar com respeito à tarefa de ordenar o fatual, a saída do círculo encantado da existência para a descrição dos afetos. Aí, falar é sempre mentir.

Não há lugar onde a inteligência dele não possa entrar, mas lá onde alcança o conhecimento, eu não vou estar. Vou pretextar uma ida ao banheiro e sumo, a mais clássica saída das mulheres fatais; que diabos pode estar querendo neste boteco que a turma dele freqüenta? Que fique com as suas olhadelas em volta, sua intimidade forçada com o garçom, a pose cool de dono do pedaço. Babaca! Todo esse conversê para chegarmos na esquina conhecida, pensa que não sei que aqui ele está seguro? O menino feliz com seu achado, a cantada eficaz que todas caem, a batida certa, a melodia que pode sacar do violão a cada vez que precisa impressionar as gatinhas; é, o terreiro conhecido faz o galo valente... Vou por um fim na brincadeira, chego na mesa, dou uma desculpa e raspo. Chega de viver no passado, de dar chance ao que já teve a sua chance. Vamos lá, espírito e finesse, dar o fora com elegância é a verdadeira arte da fuga. Getting into trouble and out of it.

Quando voltou, o por do sol atingia em cheio a mesa, banhando ambos numa luz irreal que os fazia piscar os olhos; brindaram, ofuscados. A noite não ia demorar.

4 comentários:

Climacus disse...

num texto bonito assim, o autor não está vivo, nem morto, está em obra...

Daniele Thièbaut disse...

Quanta tensão!!!!! Clímax do início ao fim! Este é um tipo de texto que a gente não compreende na primeira leitura. Tem que ficar processando, relendo, revendo, recriando até compreender.

filipe com i disse...

tks amigos, isto faz parte de uma história que não consigo escrever, aliás, parece o fragmentário domina a produção que tem sido possív...

mauverde disse...

O fragmento também conta histórias, porque as sugere a partir do que falta... ficou muito bom, poucas coisas suas são tão líricas.