A história do livreiro Radan, que separava as estantes da boa e da má literatura, evoca sem dúvida um sofrimento, uma paixão: o mal de arquivo. A impaciência do recenseamento a que se entrega, manifesta um sintoma individual enquanto coloca em relevo a necessidade, não só de um estudo de caso, mas do exame das condições em que se instituem os saberes, pondo em abismo o cânone absoluto que classifica e organiza, mas que também não cessa de perverter e derrogar o próprio registro hierarquizante ― o principium divisionis.
Mesmo o mais feroz dos códigos é vulnerado pelo esquecimento.
Ironia reveladora é também o fato de ser ele um estudioso da (ou de uma) vanguarda; o que, prima facie, pode parecer o destino singular de uma biografia, assinala discretamente uma configuração técnica, estética e política bem mais ampla. Se as vanguardas ambicionam fazer hoje a arte de amanhã, o desejo de arquivo é subsumir passado e futuro na presença sem falhas da sua memória. A cultura tem horror ao vácuo de parâmetros, ainda que pretenda se esconder atrás de um relativismo politicamente correto.
Há, porém, o inconsciente, que não se rende. Insiste um resto, um fantasma ou ruído, índices da profunda, demasiadamente humana, refratariedade à manipulação, retenção e controle definitivo; sempre algo escapa da totalização interpretativa, da completa apropriação do fato, documento ou dossiê. Uma arca, um fichário, uma matriz de bits, etc., são depósitos, instituem séries, coleções, grupamentos e reservas, organizam fluxos, estabelecem prioridades; tanto museu como rio de signos ― o arquivo inaugura e conserva, destitui uma condição ‘natural’ para implantar a convenção (nomos).
A pulsão de morte destrói, antecipadamente, seu próprio arquivo. Trabalha em silêncio.
Arkhê, vocábulo grego que conota o que está no começo, mas também o que vai à frente, que lidera; princípio físico, jurídico e histórico, ao mesmo tempo que teleológico; lugar a partir de onde homens e deuses exercem o poder e o comando. Ponto de partida de um entroncamento e extremidade; fundamento e origem da autoridade, assim, arkhós, aquele que comanda; arkhein, comandar; arkheîon, residência dos juízes; arconte, magistrado.
A banalidade dos funcionários do Castelo, do Tribunal e da Família é a banalidade do mal.
O arquivo também pode estar consignado no corpo raquítico de um burocrata, como o Sr. José do romance Todos os Nomes de Saramago, mas que isto não nos engane: sua tarefa é imensa, crítica, separar os mortos dos vivos no registro central de Lisboa. E este é um outro emblema do poder sem barra que antecede todas as formas de poder: mesquinho com as grandes, tanto quanto desumano com as pequenas questões, o arquivista cumpre ordens de um tribunal de última instância; dele se esperam decisões capitais, impessoais, irrecorríveis. Olodumaré e Oxalá.
1984 começa no Ministério da Informação, provas, traços, notícias estão sendo falsificadas; sentidos estão sendo recalcados nas palavras. ‘Duplipensar’ na ‘novilíngua’ técnica, neutra, da propaganda oficial equivale a simplesmente não pensar. Críticos contemporâneos sustentam que não há mais vanguardas, ou melhor, que elas teriam se tornado supérfluas depois do século XX. Artistas como Malévitch, Baudelaire, Wagner, Joyce, Buñuel, Duchamp, p.ex., nos libertaram da necessidade de critérios fixos para avaliar as obras de arte e até mesmo o conceito de ‘objeto artístico’ se tornou, a partir de então, dispensável.
Cada obra é, portanto, aberta a quantas leituras seja capaz de suscitar e julgá-la implica em submeter-se às características internas que a sustentam e constituem. Cada obra de arte inaugura uma espécie de um indivíduo só. Nada disto, evidentemente, é falso, mas também não é (inteiramente) verdadeiro. Neste momento de pletora de circulação, armazenamento, produção e troca de informações, os filtros seletores adquirem importância desproporcional; exemplo: não foram a imprensa e os intelectuais ‘liberais’ norte-americanos que invadiram o Iraque e o Afeganistão neste começo de século XXI, embora a sua omissão tenha sido vergonhosa.
N.O.V., nenhuma oposição visível.
Reflexão e crítica são e serão sempre indispensáveis, a auto-desmobilzação de ambas atualmente em curso dá ensejo a todos os revisionismos e mistificações que a estratégia do Terror necessita. O terrorista que se explode e explode os outros, encarnação momentânea do mal absoluto, vê a si mesmo como crítico: crítico da religião, crítico do Estado, da política, da mídia, dos costumes... o terrorismo crítico, pouco ou muito esclarecido, se inscreveu no Zeitgeist; seu espectro autoritário ronda nosso mal-estar modernoso: um especialista em vinhos, Robert Parker, logrou globalizar seus preconceitos por meio da força do seu prestígio.
Para voltarmos às artes: é possível, sim, destruir uma obra usando contra ela o que ela tem de melhor, fazer a sua estrutura voltar-se contra si própria, tal uma doença auto-imune induzida de fora para dentro. Schoenberg teve recusada a execução de uma peça por uma sociedade de concertos porque continha um acorde de nona invertido, “o que não existe”.
Da Quarta Sinfonia de Brahms foi dito: “nunca, jamais, em uma obra, o trivial, o vazio e o enganoso estiveram tão presentes; a arte de compor sem idéias nem inspiração encontrou seu digno representante.”
Do Em Busca do Tempo Perdido de Proust: “encarniçado em fazer o que é exatamente o contrário de uma obra de arte, o inventário de suas sensações, o recenseamento de seus conhecimentos, em um quadro sucessivo, jamais de conjunto, nunca inteiro, da mobilidade das paisagens e das almas.”
De Euclides da Cunha: “os Sertões não é livro de história, estratégia ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões sobre a alma de Euclides da Cunha.”
Para voltarmos ao banco de dados do Mal, convém lembrar a derradeira humilhação a que Freud foi submetido quando deixava uma Viena transformada em playground de milícias assassinas em 1938. As autoridades exigiram dele que assinasse uma declaração em que afirmava não ter sido maltratado ― declaração de punho para supremo gozo do catálogo! Freud assinou acrescentando: “Penso recomendar altamente a Gestapo a todos”.
QUE FAZ UMA PORTA QUANDO ABRE PARA OUTRA PORTA?
Trecho do filme "A Questão Humana", música incidental: "Salam" do Mahalab.