sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Natividade


Sulamita amava Carlos Calado, que a amava também, dividiam o consultório de odontologia, um sobrado situado no Paraíso, mesmo bairro onde moravam há dez anos, desde que se haviam casado; ele, um especialista em endodontia, ocupava o andar de cima e tratava os dolorosos canais, ela ocupava a sala do térreo ao lado da secretária e cuidava da parte estética: implantes, clareamento, correção de serrilhado, etc.; completavam-se e prosperavam, tinham chegado àquele ponto do casamento em que as cobranças vinham em salvas constantes: “vocês se dão tão bem, quando é que vão encomendar os filhos?”, ou, em festas familiares, “quando vou ganhar netos?” e por aí a coisa ia, Carlos não dava muita bola, respondia apontando a barriga mais e mais proeminente dizendo que a criança já estava lá, só faltava sair; desfazia a pressão com piadas e ia levando, já para Sulita a banda tocava diferente, a marca assustadora dos quarenta anos parecia se aproximar cada vez mais rápido, as tentativas de inseminação natural e artificial sucediam-se infrutíferas (e caras: quinze mil a cada vez), as amigas pareciam ter combinado e engravidavam uma atrás da outra, arrastando-a para uma sucessão de chás de bebê, visitas a maternidades e aniversários de bufê que contribuíam ainda mais para a sua frustração; segundo os especialistas, os óvulos dela conseguiam ser fertilizados, sofriam uma primeira divisão e aí se esfarelavam misteriosamente; sentia-se em falta e incompleta, mas o pior era um sonho recorrente que começou a ter quase duas vezes por semana: Carlos invariavelmente aparecia conversando com outra mulher grávida, e quando ela tentava se aproximar e falar com ele, percebia que ele e a moça estavam muito distantes dela, em geral não lhe falavam, mas num dos sonhos a moça lhe disse que sabia quem ela era, “um fantasma do passado de Carlito”; este não era insensível ao que se passava com a mulher, insistia em vão para que começasse uma terapia, propôs-lhe a adoção ― Sula tinha verdadeiro horror a esta hipótese ―, percebia a instabilidade emocional que os tratamentos causavam, a bagunça que injeções de hormônios e estimuladores de ovulação produziam, nele mesmo os efeitos não eram menos devastadores, se pegou chorando numa daquelas cabininhas com revistas pornográficas em que o exame de esperma se transforma num lamentável pastiche da masturbação adolescente; mas nada se comparou ao dia em que ficou de “prontidão”, esperando que a temperatura da vagina subisse a determinada temperatura e lhe telefonassem da clínica de fertilidade para fazer sexo com hora marcada; daí por diante ele pirou o cabeçote e brochou completamente, o tesão tinha acabado, o carinho, o respeito e o casamento juntos; separaram-se, ela continuou morando no apartamento e ele ficou sozinho no consultório; Sussu trocou de carro e agora andava com essa mania de comer pistache o tempo todo, tanto, que acabou quebrando um dente numa casca e deixou-o sem reparo; ele chegou a achar que talvez tivesse que lhe tratar um canal ali logo, logo, mas ela não o procurava para mais nada, nem mesmo a auxiliar dela tinha levado; Maria da Conceição tinha sido contratada por um programa da prefeitura e funcionava como uma espécie de estagiária, agora desnecessária, mas que ele não poderia dispensar porque estava grávida de seis meses; vacilo de uma balada, o rapaz, que ela mal conhecia, viajara para o Nordeste sem saber de nada; era época das festas de fim de ano, Carlos foi atender uma urgência de um antigo cliente e aproveitou para entregar a Conceição uma cesta de Natal, eles escutam a porta do primeiro andar se abrir e assomam ao alto das escadas para dar de cara com Su imóvel na soleira da porta; sem dizer palavra ela sai em disparada, ele liga cinqüenta e três vezes para o celular dela, corre para a ex-casa, liga para toda a família, os amigos... sumiço total; de madrugada, um telefonema da polícia rodoviária o chama para reconhecer o corpo: tinha entrado na estrada velha de Santos, ninguém sabia como, e foi achada caída em um barranco; ficou em estado de choque ao se dar conta de que ela estava completamente nua esmagada nas ferragens do Honda Civic.

6 comentários:

Luma Rosa disse...

A história a princípio se parece com a história de casada de uma amiga, mas acho que isto deve acontecer com muitos casais - esse lance de ter hora certa para o sexo, acaba por tirar a espontaneidade, repercutindo em outras áreas do relacionamento.
Mas que tragédia ao final!! Nua? Criou-se uma incognita pra mim! Beijus,

Dalva M. Ferreira disse...

É a vida!

angela disse...

Quando o nascer vira obrigação, salvação,realização narcisica, acaba em tragedia.
Quantas acontecem por aí.Mulheres rejeitadas por não parirem filhos ou só parirem meninas.Vide Xa da Persia,Henrique VIII, etc.
O conto ficou bom,caminhando para a tragédia semque desse para perceber.
Agora...vai ter que continuar pra explicar como ela encontrou a morte nua.

José Doutel Coroado disse...

Belo conto, Filipão.
Muitas e boas portas abertas para que a imaginação do leitor vá completando os cenários...
Gostei!

Anônimo disse...

Tá ai gostei do final...a little french.

filipe com i disse...

bem, não sei se posso querer controlar destinos, mesmo que seja de seres de ficção como carlos/sulamita; reconheço que há fios soltos e não sei explicar a nudez final, apenas digo que a Sulamita bíblica foi uma favorita do harém de Salomão (até este se encantar com a Rainha de Sabá)e seu nome significa "a que possui a perfeição". tks a todos