Sulamita amava Carlos Calado, que a amava também, dividiam o consultório de odontologia, um sobrado situado no Paraíso, mesmo bairro onde moravam há dez anos, desde que se haviam casado; ele, um especialista em endodontia, ocupava o andar de cima e tratava os dolorosos canais, ela ocupava a sala do térreo ao lado da secretária e cuidava da parte estética: implantes, clareamento, correção de serrilhado, etc.; completavam-se e prosperavam, tinham chegado àquele ponto do casamento em que as cobranças vinham em salvas constantes: “vocês se dão tão bem, quando é que vão encomendar os filhos?”, ou, em festas familiares, “quando vou ganhar netos?” e por aí a coisa ia, Carlos não dava muita bola, respondia apontando a barriga mais e mais proeminente dizendo que a criança já estava lá, só faltava sair; desfazia a pressão com piadas e ia levando, já para Sulita a banda tocava diferente, a marca assustadora dos quarenta anos parecia se aproximar cada vez mais rápido, as tentativas de inseminação natural e artificial sucediam-se infrutíferas (e caras: quinze mil a cada vez), as amigas pareciam ter combinado e engravidavam uma atrás da outra, arrastando-a para uma sucessão de chás de bebê, visitas a maternidades e aniversários de bufê que contribuíam ainda mais para a sua frustração; segundo os especialistas, os óvulos dela conseguiam ser fertilizados, sofriam uma primeira divisão e aí se esfarelavam misteriosamente; sentia-se em falta e incompleta, mas o pior era um sonho recorrente que começou a ter quase duas vezes por semana: Carlos invariavelmente aparecia conversando com outra mulher grávida, e quando ela tentava se aproximar e falar com ele, percebia que ele e a moça estavam muito distantes dela, em geral não lhe falavam, mas num dos sonhos a moça lhe disse que sabia quem ela era, “um fantasma do passado de Carlito”; este não era insensível ao que se passava com a mulher, insistia em vão para que começasse uma terapia, propôs-lhe a adoção ― Sula tinha verdadeiro horror a esta hipótese ―, percebia a instabilidade emocional que os tratamentos causavam, a bagunça que injeções de hormônios e estimuladores de ovulação produziam, nele mesmo os efeitos não eram menos devastadores, se pegou chorando numa daquelas cabininhas com revistas pornográficas em que o exame de esperma se transforma num lamentável pastiche da masturbação adolescente; mas nada se comparou ao dia em que ficou de “prontidão”, esperando que a temperatura da vagina subisse a determinada temperatura e lhe telefonassem da clínica de fertilidade para fazer sexo com hora marcada; daí por diante ele pirou o cabeçote e brochou completamente, o tesão tinha acabado, o carinho, o respeito e o casamento juntos; separaram-se, ela continuou morando no apartamento e ele ficou sozinho no consultório; Sussu trocou de carro e agora andava com essa mania de comer pistache o tempo todo, tanto, que acabou quebrando um dente numa casca e deixou-o sem reparo; ele chegou a achar que talvez tivesse que lhe tratar um canal ali logo, logo, mas ela não o procurava para mais nada, nem mesmo a auxiliar dela tinha levado; Maria da Conceição tinha sido contratada por um programa da prefeitura e funcionava como uma espécie de estagiária, agora desnecessária, mas que ele não poderia dispensar porque estava grávida de seis meses; vacilo de uma balada, o rapaz, que ela mal conhecia, viajara para o Nordeste sem saber de nada; era época das festas de fim de ano, Carlos foi atender uma urgência de um antigo cliente e aproveitou para entregar a Conceição uma cesta de Natal, eles escutam a porta do primeiro andar se abrir e assomam ao alto das escadas para dar de cara com Su imóvel na soleira da porta; sem dizer palavra ela sai em disparada, ele liga cinqüenta e três vezes para o celular dela, corre para a ex-casa, liga para toda a família, os amigos... sumiço total; de madrugada, um telefonema da polícia rodoviária o chama para reconhecer o corpo: tinha entrado na estrada velha de Santos, ninguém sabia como, e foi achada caída em um barranco; ficou em estado de choque ao se dar conta de que ela estava completamente nua esmagada nas ferragens do Honda Civic.
6 comentários:
A história a princípio se parece com a história de casada de uma amiga, mas acho que isto deve acontecer com muitos casais - esse lance de ter hora certa para o sexo, acaba por tirar a espontaneidade, repercutindo em outras áreas do relacionamento.
Mas que tragédia ao final!! Nua? Criou-se uma incognita pra mim! Beijus,
É a vida!
Quando o nascer vira obrigação, salvação,realização narcisica, acaba em tragedia.
Quantas acontecem por aí.Mulheres rejeitadas por não parirem filhos ou só parirem meninas.Vide Xa da Persia,Henrique VIII, etc.
O conto ficou bom,caminhando para a tragédia semque desse para perceber.
Agora...vai ter que continuar pra explicar como ela encontrou a morte nua.
Belo conto, Filipão.
Muitas e boas portas abertas para que a imaginação do leitor vá completando os cenários...
Gostei!
Tá ai gostei do final...a little french.
bem, não sei se posso querer controlar destinos, mesmo que seja de seres de ficção como carlos/sulamita; reconheço que há fios soltos e não sei explicar a nudez final, apenas digo que a Sulamita bíblica foi uma favorita do harém de Salomão (até este se encantar com a Rainha de Sabá)e seu nome significa "a que possui a perfeição". tks a todos
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