Estávamos sentados a tomar o café depois do almoço e a conversa ia e vinha a propósito e despropósito das imagens que corriam na televisão.
- Que raio… Agora é todos os dias! Até parece que não há mais nada para dar! Mais um que matou a mulher…
- Sabe-se lá o porquê destas coisas… Quantas mais falarem nisto, mais malucos há para os imitarem.
- Tu achas que funciona assim? Só porque ouvem na televisão uma notícia destas, há gente capaz de pensar em dar um passo destes? Não… Quem faz uma coisa destas é porque já a andava a tramar…
Entretanto, chega o Neca e senta-se para tomar o cafézinho.
- Então, novidades?
- Mais um que matou a mulher… deu agora mesmo nas notícias.
- Disseram que este ano já há oito mortes destas…
- E ainda o ano está a começar!
- Não dá para perceber… Porra, se uma gaja anda a pôr os cornos a um gajo eu ainda aceito que se lhe dê um par de estaladas e depois… rua! Agora, matar??
O Neca pousou a chávena e puxou do cigarro. Como aquele era um café de não-fumadores ficou a brincar com ele entre os dedos.
- Pois… É fácil falar quando não é connosco.
Olhai… Quando estava na guerra na Guiné, foi parar à minha unidade um rapaz aqui de Trás-os-Montes. Calado, daquele tipo de gente que se mete para dentro de si mesmo… Mas era um gajo de confiança! Quando precisasses dele podias ter a certeza que não falhava. Passado um tempo, ele soube que eu também era destas bandas e como eu era alferes veio pedir-me um favor..
Bom, o que interessa é que fomos ficando mais à vontade um com o outro e um dia, já nem sei por que carga de água, veio à baila falarmos sobre a minha ida para a guerra.
Lá lhe contei que tinha sido obrigado a abandonar Coimbra e o curso por que alguém deve ter achado que eu também andei metido naquela confusão da greve académica… Como se eu não tivesse coisas mais interessantes para me ocupar do que com a merda da política…
Foi então que me contou a história dele.
Trabalhava numa oficina de automóveis como aprendiz de mecânico. Já namorava com uma rapariga lá da aldeia há bastante tempo. Como tinha sido aumentado e o padrinho, que era o dono da oficina, lhe tinha prometido que podia ficar a trabalhar naquela arte, tinham achado que estava na hora de constituir família e decidiram casar.
O casamento estava marcado para um sábado e na quinta-feira o padrinho chamou-o ao escritório onde também estava a madrinha que lhe desejou as maiores felicidades e lhe entregou um grande embrulho. Era a prenda de casamento. O padrinho disse-lhe que podia ir para a aldeia, para ajudar aos preparativos da boda e prometeu-lhe que estaria lá bastante cedo para dar uma palavrinha aos pais dele.
O rapaz lá foi. Apanhou uma boleia e chegou à aldeia ao fim da tarde.
Como levava a prenda e querendo fazer uma surpresa à noiva decidiu que o melhor era não a guardar em casa.
Atrás da casa tinham um palheiro e foi para lá que se dirigiu enquanto pensava qual o melhor lugar para esconder o embrulho.
Conforme abriu a porta, ouviu uns ruídos… eram uns gemidos que vinha de trás de uns fardos de feno. Curioso, deu dois passos na direcção dos fardos e pôs-se em bicos de pés para ver por cima deles…
Ficou paralizado, deixou cair das mãos o embrulho…
Encostada aos fardos estava uma forquilha…
Instintivamente, pegou nela com as duas mãos e atirou-se por cima dos fardos de feno e espetou a forquilha no par que dava origem àqueles gemidos.
Os ganchos da forquilha trespassaram o homem de um lado ao outro e enterraram-se na moça.
Com raiva, empurrou uma e outra vez a forquilha até lhe doerem os braços da força que fazia.
Olhou uma última vez para aquele par desgraçado e foi-se embora. Voltou para a sede do concelho e entregou-se à Guarda.
Quando acabou de me contar isto as lágrimas enchiam-lhe os olhos e disse-me:
- Meu Alferes, o que mais me custa são as saudades que tenho do meu Pai. Mas não estou nada arrependido de ter feito aquilo que fiz. Se preciso fosse, voltava a fazer a mesma coisa!
Foi aí que eu percebi que ele tinha morto o pai e a noiva.
Os dois companheiros de conversa estavam estarrecidos.
- Raio de vida…
10 comentários:
Que história mais triste! Muito bem contada, mas muito triste.
Como é que se vive com isso?
abraço
Olá!
Vim te visitar! Que história trisye, amiga!!!
Tenha um ótimo domingo!!!
Bjkas!
A isto, em psicanálise, me atreveria chamar de "devastação"... é quando se perde "num simples subir de dedos dos pés" referências continentes... sem as quais perde-se a bússola que orienta o caminho em direção ao outro... ao laço... ao sentido da vida...
Viver, Angela, independe dos sentidos... vive-se tb à revelia...
ab
Ana
Só não sei se isso é vida.
Pois é Angela,
Nem vc, nem eu, nem ele... mas é que o pulso, insiste...
Talvez, sabiamente... morrer de dor, é fazer dela a única sobrevivente. Sorrir de novo é o desafio vencedor (vês, que interessante? vence-dor). E nessa lida, lá no final das contas, o único aliado, é o pulso...que insiste.
Ana Cecilia
Me rendo a beleza de seus argumentos, afinal o pulso pulsa de dor!
tirante as explicações técnicas, o conto é muito bom enquanto literatura. Parabéns, José!
Grato pelos comentários.
Cara Angela, lembra aquela pergunta do Pablo Neruda? "Tu sabes, porém, se a morte vem de cima ou de baixo?"
Foi esta pergunta que me fez recordar esta estória... Por incrível que pareça, a minha parte só tem a ver com a transferência para um conto. No que conta mesmo, tudo aconteceu mesmo.
abs
Angela,
Edmar ficou com um pequeno ciúme, ou uma ingênua inveja de nossas trocas? (rs)
Não me contive... e brinco, mas fiquemos todos com nossas opiniões!
todas elas alimentam!
bj
esta história me lembrou um filme chamado "perdas e danos" no Brasil, se não me falha a memória, com o Jeremy Irons e Juliette Binoche. Magistral, esta prosa de bar!
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