sábado, 16 de janeiro de 2010

A Inveja - epílogo


Chegou tarde ao escritório e, para sua surpresa, o irmão já estava por lá. Na hora do almoço, a secretária lhe comunica que o irmão lhe pedia uma conversa em particular. Pronto, a casa caiu de vez, pensou, Larissa não agüentou e já contou tudo pra ele. Crime e castigo. Foi até ao lavabo do escritório e se olhou no espelho novamente: uma cara de acabado, a pele amarfanhada, olheiras, barba mal feita. Preparou-se para uma cena terrível, uma ruptura comercial e familiar.
Martin irrompe na sua sala surpreendentemente feliz, falastrão como sempre e excepcionalmente afetivo; dá-lhe um abraço e um tapa nas costas.
― Vamos logo almoçar, se deixar você não sai mais daqui. Tenho um restaurante que você ainda não conhece pra te levar ― com o seu jeito espalhafatoso, Martin chegou causando rebuliço e recebendo cumprimentos pelo desempenho televisivo dos funcionários. Antes que Matias pudesse reagir, desligou o computador onde ele trabalhava.
Talvez tenha sido um filósofo romano o primeiro a perceber que cada dia é uma epopéia única, uma vida dentro da vida e, assim, todo tempo transcorrido entre duas auroras encerra a sua própria lição. Dentro daquelas vinte e quatro singularíssimas horas, Matias não imaginaria que toda a sua vida podia ser concentrada no intervalo de uma hora ― menos ainda que passaria o resto do seus dias pagando pelo que lhe estava pretes a ser revelado.
O restaurante era muito agradável, sentaram numa mesa que ficava no meio de um jardim arborizado, sob a sombra acolhedora de um oiti. Fazia um tempo excelente.
― Que cara é essa rapaz?, parece que você caiu na maior gandaia ontem... Cara, tô feliz como poucas vezes você me viu. Me sinto realizado, a noite de ontem foi perfeita ― pediu uma entrada e drinques sem reparar que o irmão mal tocava no que quer que fosse servido.
― Sim, você foi muito bem... ― Matias hesitava entrar em qualquer assunto, na verdade, daria tudo por uma desculpa razoável para sair dali correndo.
― É uma grande prova do nosso crescimento pessoal e profissional...
“... do seu sucesso, você quer dizer!”, Matias pensou.
― ... acho que nunca te confessei isso, eu sou um cara inseguro, sempre achei você uma ameaça....
“Como assim?, você sempre me humilhou, nunca reconheceu o meu valor ou ao menos percebeu a minha presença!”
― ... eu não podia te reconhecer, você sempre fez tudo melhor do que eu, eu só fazia barulho, quem fechava os negócios e fazia acontecer era você. Por isso eu tinha que ficar com o brilhareco, o fogo fátuo, tipo a espuma do champanhe...
“Eu,eu, eu... maninho, você é um viciado em você mesmo”.
― ... até no futebol, que todo mundo falava que eu jogava melhor do que você, mas quem foi lá e marcou o gol do campeonato foi você, lembra? Fiquei dividido... por um lado queria te abraçar, mas alguma coisa me segurava, mais uma vez você entrava na minha vida para tirar o meu brilho...
“Ele tá louco, não pode ser!”, nauseou, sentiu que o sangue lhe fugia do rosto, por sorte, o irmão não pescava nada da sua vertigem e continuava:
― Por trás da minha arrogância, estavam o medo e a insegurança. Até a Larissa achei que você ia me roubar, dá pra acreditar na minha estupidez?
Um maremoto revolvia o seu estômago, as mãos tremiam; daí em diante saiu do ar, foi como se não estivesse mais ali. A transformação estava completa, os dois irmãos haviam invertido seus papéis. E Matias não podia suportar seu novo lugar.
― ... mas hoje me sinto mais forte, e tenho que dar o braço a torcer: depois do pai e da mãe, você e a Larissa são as pessoas mais importantes para mim. Brodão, você é o cara!
Pálido como uma folha de sulfite, já não concatenava mais uma idéia com a outra, o restaurante ao ar livre o sufocava, as árvores o ameaçavam, os pássaros o acusavam e ele se sentia em queda livre. Uma descida infinita rumo ao saco sem fundo dos equívocos mortais.
Olha o abismo, diz o ditado, e o abismo te olha. Matias pulara para o palco, se atrevera além dos bastidores e das coxias, penetrando nos camarins da vida do irmão; tinha realizado um antigo desejo e se descobriu, tarde demais, perdido num labirinto de espelhos. O mundo que se abria depois da sua vingança particular era cruel e atormentado; a Nêmesis, tão longamente acalentada em sonhos, voltava-se contra ele mesmo.
A pá de cal, terrível, veio em seguida:
― A Larissa e eu decidimos finalmente parar o anticoncepcional e agora o herdeiro vai vir a qualquer momento, tenho certeza. Ainda este ano você vai ser tio, meu irmão! ― A amnésia alcoólica cedeu um clarão de perigosa lucidez na mente de Matias, ele e a cunhada tinham trepado várias vezes naquela noite, e ele só levara uma única camisinha!
“Taquiospariu, fiz uma cagada monumental!”, pensou desarvorado.
Agora compreendia a raiz da sua obsessão: sua vida tinha sido corroída por uma grande mentira, seu mundo afetivo era um deserto porque se tornara um ressentido; o que a vida lhe tinha posto no caminho fora carcomido pela competição insensata alimentada em relação ao primogênito. Num relance, Matias percebeu o porquê de não conseguir amar, se casar, ou até mesmo ter alguém para partilhar a intimidade: toda a sua vida, sua forma de estar e de ser no mundo era contra; tinha vivido noutra dimensão, uma realidade paralela ao amor.
Naquele mesmo ano Larissa e Martin tiveram sua única filha, Lídia, que a mãe dele não teve dúvida em afirmar a semelhança com Matias já na maternidade. Martin nunca pôde compreender a frieza posterior da esposa, fato parcamente compensado pela proximidade que o irmão mantinha agora. Larissa nunca mais conseguiu esquecer aquela noite, assim como nunca mais se livrou de um cheiro indefinível, um odor que não pertencia a Martin ou a Matias, o cheiro de um outro homem.

4 comentários:

José Doutel Coroado disse...

Boa...
bem epilogado!
Bom final! Parabéns!!

Anônimo disse...

Gostei! Uffa...meu suvaco já estava cansado.

angela disse...

Caim e Abel sob novas luzes.
Quem tinha inveja de quem?
Ficou um conto ótimo, com as culpas, as dores, os prazeres e as lembranças.

mauverde disse...

Lady Bone, wonderful!! Thanks for it!