domingo, 10 de janeiro de 2010

A Inveja - parte II


― Carolina Herrera ― Matias roubava na cara dura, o irmão tinha lhe pedido para comprar o perfume preferido dela no dia dos namorados que ele, para não perder o costume, havia esquecido. Uma estranha metamorfose estava em curso, já não seria tão fácil, daquele momento em diante, distinguir um irmão do outro, tal a semelhança de modos e maneiras de agir.
― ... linha musk! É incrível, mas como...? ― estava encantada, Matias era retraído, discreto e, mais que tudo, ele a escutava com uma atenção beirando o fervor. Com ele não tinha a impressão de falar para alguém que estava pensando em outra coisa, como acontecia com tanta freqüência conversando com o marido.
Martin fazia o seu número habitual na TV: falava das “suas” realizações e planos de futuro, da “sua” história incrível ― de como “ele” transformara uma padoca da Vila Guilherme numa rede de panificadoras de luxo. Os dois se entreolhavam atônitos, cada vez mais cúmplices na indignação, sem acreditar no que viam e ouviam. Sem dar por ela, ambos chegavam a um acordo sem palavras e se aproximaram mais meia polegada no sofá, a esta altura grande demais para tamanha empatia e intimidade de propósitos. Mas o pior estava por vir.
― E agora, a minha contribuição gastronômica mais importante, o carro-chefe do Empório: os bolinhos de bacalhau Lícia! ― Martin serviu os famosos bolinhos para uma roda de convidados que babavam ao vivo e a cores.
― Minha contribuição? Como assim... “minha”?! ― Matias zanzava furioso pela sala, puxou o celular e tentou diversas vezes falar com a casa dos pais em Bragança, mas ninguém atendia. A cunhada tentava acalmá-lo.
― Sossega Matias, sua mãe não está vendo o programa... falei com ela hoje e ela me disse que não ia poder ver ao vivo. O programa passa muito tarde e parece que o seu pai dá muito trabalho durante a noite, por isso ela deita mais cedo ― Larissa sabia bem o que o deixava tão nervoso, maquiar a história da empresa até vai, mas roubar a autoria da receita da própria mãe era simplesmente o fim da picada!
A padaria Lícia tinha sido a obra da vida inteira do casal Pereira Santos; graças ao bolinho de bacalhau da mãe, tinham conquistado uma clientela fiel e estabelecido o ponto ao longo de décadas de honestidade e trabalho duro. Quando os herdeiros tomaram a administração e expandiram a marca, o crescimento deveu-se em boa parte à credibilidade que os pais haviam conquistado para o negócio familiar. Na ocasião, foi uma iniciativa de Matias contratar Larissa para criar o logotipo da rede de padarias. Que a extroversão galanteadora de Martin tivesse arrebatado a arquiteta e os holofotes do sucesso era só um capítulo na rivalidade surda e unilateral que Matias alimentava.
― Parece que essa é a história da minha vida, ele sempre chega antes e fica com tudo: a atenção dos pais, o sucesso nos esportes e até mesmo... ― interrompeu-se com medo do que quase saiu da sua boca. Resolveu que já tinha tomado muito desse maldito uísque de milho.
― Imagina Matias, vocês têm só onze meses de diferença de idade, um nada, são sócios numa empresa de sucesso, teus funcionários te admiram pra caramba... que mais você poderia querer? ― falou e já se arrependeu na mesma hora, compreendendo que tinha também bebido pra lá da conta e que devia tirar a mão dos cabelos do irmão, e sócio, do seu marido. Neste momento tocou o telefone.
― Oi amor... sim, vimos... é, seu irmão tá aqui comigo... claro que a gente gravou, você esteve ótimo na entrevista... ah, jura?, tá bom, certo... um beeeijo, se cuida, tá? ― pousou o aparelho, escolheu um CD e ligou o som. O telefonema fez um iô-iô dentro dela, primeiro alegrou-a por ouvir a voz de Martin, depois jogou-a na vala comum de tantas outras noites: “sinto muito, querida, vou chegar mais tarde hoje; não me espere para jantar”.
― Essa eu também posso adivinhar: meu irmão ligou dizendo que vai dar uma esticadinha com o diretor do programa ou o pessoal da produção e vai demorar, acertei? ― não obteve resposta, Larissa apenas ficou ali, de pé, com os olhos semicerrados ― Espera, que música é essa que tá tocando?
― Você gosta? É uma das minhas favoritas... chama-se “The Man I Love”. Fala de alguém que espera um amor e acredita que ele, ou ela, vai chegar, mas é tão triste... Não consigo explicar porque essa melodia me emociona tanto ― redemoinhava nela um turbilhão de sentimentos desencontrados: a frustração da relação com Martin, a felicidade inebriante de encontrar um substituto que era a versão melhorada dele, a descoberta de uma solidão que podia compartilhar... A banda dos corações solitários tocava agora a música de Ira e George Gershwin na voz de veludo de Mabel Mercer.
Matias só via diante dos seus olhos aquele vestido azul, que lhe trazia de volta uma cena antiga da sua adolescência; o mesmo arrepio na pele, a mesma sensação de peso no estômago: estava completamente emocionado. Era azul a cor a camisa do time de várzea em que ele e o irmão jogaram, o Sport Clube Vila Teodoro. Ele era apenas o esforçado reserva do lateral direito, e o irmão, o craque do time, o camisa nove ― goleador e ídolo do bairro, para variar. Só que o futebol tem dessas coisas, no dia da final chega o titular da camisa dois completamente encachaçado, tropicando nas próprias pernas. Não teve jeito, Matias, o eterno perna-de-pau, vai para o jogo defender a ala direita do glorioso Vila Teodoro.
O jogo é duro, cheio de faltas e brigas, numa delas o irmão é expulso. Calamidade total. A partida acabando, o artilheiro toma cartão vermelho e o São Miguel F.C. cresce no jogo. Quarenta e três minutos do segundo tempo. Bola na ponta, Matias recebe e olha para a grande área: um bololô de gente, seja o que Deus quiser, ele fecha os olhos e chuta a bola para o meio da confusão. Em pleno ar, a bola pega um efeito e vai para dentro do gol. O goleiro percebe a mudança de rota e tenta agarrá-la, mas cai com bola e tudo dentro do gol. Apito final. Comemoração, abraços, todo o time e mais os reservas correm para cima dele, o Vila Teodoro é campeão! Todos o abraçam, menos o irmão ― falta grandeza ao craque nessa hora, que ainda lhe joga na cara: gol espírita, foi cruzar na área e acertou o gol sem querer...
― Vamos dançar... me abraça, vai... ― Larissa já estava sem os sapatos e ele fez o mesmo, enquanto a música se insinuava entre eles ternamente, com um abraço macio e amigo.
Talvez seja impreciso dizer que ela se deixou levar, já Matias simplesmente não mediu as conseqüências, como aqueles personagens de desenho animado que ultrapassam correndo a borda do abismo, bastaria ter olhado para baixo e ele teria caído ― em si. Há esse momento imperceptível em que o sujeito tira os pés do chão e, no entanto, continua aparentemente levando a sua vidinha normal: vai ao supermercado, paga apólices do seguro, participa de reuniões de condomínio, etc., mas está viajandão na maionese, flutuando a poucos milímetros do chão real das coisas. O curioso é que ele pensou nisso enquanto tirava os sapatos para dançar, lembrou de um documentário que tinha visto sobre os monges levitadores do Tibet. Ao contrário do que ele imaginava, eles não saíam voando pelos ares: os bonzos em transe contrariavam a lei da gravidade, mas só deixavam o solo por alguns poucos centímetros. É o que basta.
Larissa tinha lá os seus motivos; não sofria do mal que corroia as entranhas do cunhado, mas sofria de solidão e atravessava uma crise tremenda no casamento. Descobrira recentemente que o marido, em risco de se tornar ex, mantinha um relacionamento pra lá de tórrido com a sua, esta sim ex, melhor amiga. Tudo conspirou para que as suas defesas estivessem anormalmente baixas para resistir à investida do cunhado. E naquela noite ela encontrou um homem disposto a avançar um passo à beira do abismo.

3 comentários:

angela disse...

Até me deu comichões na solo do pé.
E agora José?

José Doutel Coroado disse...

Será que avança e dá o tal passo para o abismo?
Parabéns!
(espero pelas cenas do próximo capítulo)

Dalva M. Ferreira disse...

Uia! suspense... será um grande romance cujo embrião nos é oferecido online? Uia!!!