domingo, 21 de dezembro de 2008
babuínos têm úlcera (zebras não)
rua mata-pais
em pós
matar o país
ser vítima da própria verdade
Deus é o nome do problema
Gratis pro Deo
e também o problema do Nome
o paralelo moral
tudo cabe na palavra tudo
toda coisa na palavra coisa
Deus, uma das máscaras mortuárias do Louco
personagem necessário
do sonho
― máquina de torturar babuínos ―
aparelho de báscula
nos gradientes
fundo-figura
[que vão] do Desejo para
o Real
e vice versa
porque no princípio
era só o Princípio
(o Grande Arquivo)
Logos/Físis/Hilé
são Meta
Deus é o enigma d’A Mulher
mas não sabia de nada
em Sua feroz ignorância
Dele a mão invisível do mercado
de sujeitos modernos
orgulhos tribais
empresas transnacionais
― e também não sabia dos ativos inflados
nem do rodo que passa todo dia nas bordas
do Sistema
a que serve a eminência
ausente
da operação abstrata (que gera a)
produção simbólica (vendida pelo)
marketing fantasmático
uma vez que a regra do jogo
é:
fique vivo
ainda mais que a Deus e à Mãe
nunca se perdoa
de todo
exílio tão insensato
a vida?
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
a vontade do grupo desperta a paixão do artificial
o lírio da dominância hostil encarniça
telas iminentes sob a história View Master
e dobras retornos de potestades auto-engendradas exponencialmente
organismos de terror puro e sentimentalidade
carapinas e súditos do: “Vá e leia”
pululam em raios UV nos vácuos pânicos nos interlúdios
do economista celibatário
Zion, país evitável de cidades impossíveis
poderia eu louvar perante os inimigos teus tribunais da parole
as constelações do teu céu de sonoridades interruptas
que liderou psicologias & mitos & desligamentos
idênticos
és o pó do pó de
um dormir ruim
ou murro ou mato ou me morro
Tu matarás, tu serás morta e mortos serão teus assassinos
teu corpo físico devorará o corpo quântico
das hagiografias
negativas
incluindo as termináveis listas de seres miraculantes
Tudo somado, não sobra mais que um posto na Floresta dos Nomes
uma verdade que afirma o império duvidoso
da Palavra, sabendo a vida vaivém
do Inarticulável
e que no coração do circo
sempre cabe mais um palhaço
e, na tua forja, Zion, as Assembléias trapaceiam na liga, no peso, no amálgama,
da Coisa
se lhe roubam metade,
fazem dinheiro
se roubam um quinto,
fazem notícia
se roubam um milésimo,
fazem um reino
“Em cima do catarro
Tem um copo edipiano
Quem bebeu, morreu
O azar foi seu”
domingo, 14 de dezembro de 2008
CONTINUUM
Estacionou o carro após três horas e meia de viagem, os labradores dispararam uma algazarra de lambidas e pulos; os latidos ecoavam no braço de encosta coberto da mata densa que envolvia a casa e descia em declive abrupto até as franjas da praia. Manuela recolhia ao santuário das suas crises; uma semana isolada de gente e celular desligado seria, mais uma vez, suficiente para recuperá-la ― os sócios que segurassem os BOs na agência. O caseiro e a mulher estariam fora no final de semana: um feriado religioso caindo no sábado. Finados, talvez.
Que importa, agora só lhe importava mesmo preparar um dry martini decente, se largar na rede da varanda de frente para a vegetação, ouvindo o mar à distância. Balançando de leve, sem pressa para se entregar ao livro em suas mãos, meio embalada pelos esbarrões dos cachorros e o canto dos pássaros, meio desperta pela sensação gelada dos dedos que mergulhava no copo, ela recorda o ponto exato em que largou o texto. Os olhos encontram na página a última frase lida: “... os limites do seu destino tinham sido traçados pelo seu desejo.”. Poucos compreendiam, e muitos se admiravam, desta capacidade que tinha de ficar só.
As duas marcaram o encontro no alto do morro. Uma delas, na verdade Jéssica é um travesti, já está esperando no barraco abandonado; há poucos objetos na cena, a mesa bamba e sem cadeiras, a cama é um madeirite apoiado em pés improvisados de tijolo baianinho e a espuma verde manchada por cima. Um sagrado coração de Maria na parede. Chega a mocinha: jeans largo, tênis de lona colorido e blusa de alças ― o cabelo curto lhe dá um certo ar de tomboy ― ; ela repara que Jéssica está sangrando, faz menção de ajudar, esta retira a mão.
Manu estica seu braço pelas costas da rede, sentindo na mão a textura agradável do algodão cru contra a cabeça. A traveca desfaz o primeiro dos dois embrulhos que trouxe: um trinta e oito com a numeração raspada; abre o tambor, conta as balas, entrega-o à outra.
― Tó aí, amapô, a minha parte eu fiz ― chupava o sangue do corte produzindo um barulho agudo. ― Fiz isso daqui cortando a carne pra você. Entendeu o caminho que te expliquei?
― Sua grana. Deixa comigo; a trilha sai dos fundos do barraco, certo? ― Jéssica confirmou com um aceno, ela guardou o berro e o outro pacote numa pochete que usava atravessada no tronco franzino. Despediram-se em silêncio.
Saiu quase correndo pela mata para aproveitar o resto de luz do dia. Um suor acre e viscoso se empastava na pele e os mosquitos a atacavam sem dó, mas o pior era uma ridícula lembrança que se intrometia no pensamento, uma frase de circo, hoje tem marmelada?!, repetida pela mente a cada vez que a arma dentro da bolsa se chocava contra os peitos. Procurou afastar essa bobagem da cabeça para se concentrar no caminho e em cada etapa que deveria seguir. Os cães iam estar muito ocupados para atrapalhar. Sem criados. Atravessou a cerca passando por baixo, contornou então o terreno pelo lado oeste.
Subiu no alpendre e parou alguns instantes para se acalmar; o coração batia tão forte que acreditou que poderiam escutar suas pancadas violentas na casa vazia. Hoje tem marmelada? Caminhava pisando de leve o assoalho de tábuas corridas, observando as vigas enormes de madeira envernizada no telhado enquanto se aproximava apoiando a mão livre na balaustrada. Escurecia rápido. Engatilhou o revólver puxando o cão lentamente para não fazer barulho; como calculara, o alvo estava de costas, agora perfeitamente visível. O braço estendido para fora, dedilhava distraidamente os cordões da rede.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
a treva é quem desacerta as cores
o carro estava ali, parado, demorando
até que veio o apagão:
de madrugadinha, tomando este e mais dois quarteirões abaixo
um buraco de escuridão medonha
no meio da cidade;
foi no instante que entrei,
antes é preciso dizer que o camarada estava
do lado de lá da rua, à esquerda da minha guarita
e era um pretume sem falhas, grosso
igual piche,
daí que o clarão medroso da chama
não vencia a espessura da noite por toda
força que fizesse
mas era o bastante para graduar a dimensão dela,
como uma vela cria tons na sombra
ou como o negror da roça são trevas
de outra matéria das que temos aqui;
ele deve de ter acendido um isqueiro ou fósforo dentro do carro,
acontece que naquela situação
o ar se encheu de grãozinhos de um cinza
mofado
mas que esplendiam com todas as cores do arco íris
fagulhas ciscando a noite, azougues
semelhavam, tanto que foi o instinto que tive:
pisquei
domingo, 7 de dezembro de 2008
um rei é sempre a caça de outro rei
Mueni-Congo, Mobemba Muzinga (Mobemba Muzinga, Rei do Congo)
Na margem esquerda da foz do rio Congo os navegadores deixaram um padrão ― pilar composto de uma coluna circular na base, um bloco retangular com o Pavilhão das Quinas esculpido na pedra calcária e encimado por uma cruz de ferro ― no qual assinalavam o ano, “6681 da criação do mundo e 1482 do nascimento de Nosso Senhor Jesus”, bem como a posse daquelas terras a D. João II, o Príncipe Perfeito. O capitão da esquadra e escudeiro real Diogo Cão, navegou muitas milhas adentro do Congo ou Zaire, rio a que os portugueses chamariam Poderoso a justo título, já que vem a ser o segundo maior da África. Não acharam indícios de passagem, por terra ou água doce, para o Oceano Índico, nem penetraram os domínios do lendário rei cristão africano, o Preste João, mas estabeleceram proveitoso contato com a rainha Malele kya Nsi e o reino do Congo. Esta viagem serviria mais tarde de modelo a duas outras na ficção: na travessia do rio-continente mítico de O Coração das Trevas, romance de Joseph Conrad, como no Vietnã de Apocalypse Now, filme de Francis Coppola, é o ocidental, na pele do agente/coronel Kurtz, que vai além dos “limites das aspirações permitidas”. Na história, no entanto, é o poderoso herdeiro de um reino milenar, o Mani-Congo, o rei Mobemba Muzinga, quem perde a cabeça diante dos amindele, “baleias que vêm do mar”, ou vumbi, “cadáveres vivos”, que foi como os brancos pareceram então a seus súditos. Fosse por obra dos missionários dominicanos, fosse o cálculo político de quem queria se livrar de adversários, o soberano converteu-se ao cristianismo; Mobemba Muzinga, a quem D. Manuel, o Venturoso, trataria, na correspondência que passam a trocar, de “primo” e por quem será chamado de “irmão”, abjura seus antigos deuses, muda o próprio nome para D. Afonso, troca o da capital, Quibango, para São Salvador do Congo e solicita ao papa bênção apostólica. Quando D. Afonso-Mobemba morreu envenenado, seu poderio militar decaíra, seus domínios haviam encolhido geograficamente, a aristocracia congolesa tinha sido vendida para traficantes de escravos e, daí em diante, nunca mais um Mani-Congo voltou a exercer poder efetivo, nem desfrutar da felicidade de morrer na velhice ou na glória da morte em batalha.
Montezuma, México-Tenochtitlan Uei Tlatoani (literalmente: Montezuma, aquele que fala no México-Tenochtitlan)
À frente de 35 dos seus mais valorosos soldados, Mobemba Muzinga derrotou o exército de 3.000 do seu irmão Penzo Muzinga; depois de lhe cortar a cabeça, ofereceu o fígado e o coração aos guerreiros no banquete da vitória e, ainda manchado de sangue, subiu ao trono de ouro onde foi coroado, sorrindo ao povo como era a tradição dos seus antepassados. Naquele momento, num continente que viria a se chamar América, o imperador Montezuma fechava a cara; no calendário azteca, os tempos se avizinhavam do advento de estranhas profecias: os mexicanos contavam o tempo em ciclos de 52 anos, os quais dividiam em 4 séries, ou “cores”, de 13 anos de duração a que davam os nomes equivalentes a “Coelhos”, “Bambus”, “Pedras” e “Casas”. Exatamente como funcionaria um baralho de 4 naipes, sem coringas. O mundo em que viviam, o quarto desde a criação do universo, seria destruído pelo fogo, assim como dilúvios, terremotos e furacões haviam encerrado as eras anteriores; chegaria naquele fatídico quarto ano das casas do oitavo ciclo o deus do vento que sopraria o fogo exterminador, o temido Quetzalcoatl, a Serpente de Plumas Preciosas viria do leste na figura de “um homem de boa aparência, aspecto grave, pele e barba brancas, vestido com longa túnica branca”. Nesta época vivendo em Cuba, Hernan Cortês sonhava: arrancado da pobreza, via-se ricamente vestido e sendo servido por estrangeiros que lhe diziam “numa língua gentia, palavras honoríficas e de louvor”. Na câmara de audiências do seu palácio flutuante, Montezuma observa o objeto amarrado na cabeça de uma ave, “grande como uma águia”, capturada por pescadores no lago Iztapalapa, que tanto impressionaria os conquistadores espanhóis, e que dividia em duas ilhas a sede da belíssima capital do seu império. Era um espelho, redondo e muito polido, onde se desenrolavam imagens miríficas de homens chegando em grupos armados, montados sobre bichos desconhecidos; enquanto o imperador se virava para perguntar o que era aquilo e qual o significado daquelas visões a seus astrólogos e sacerdotes, o pássaro desapareceu. A 8 de novembro de 1519, dia particularmente funesto na astrologia azteca, no qual nasciam mulheres loucas e nigromantes assassinos, os temidos Tepupuxaqueirichos, Cortês cruzava, à frente de pouco mais de 380 homens e 12 cavalos, a ponte que dava acesso a Tenochtitlan. Os nobres senhores de Tetzuco, Teotihuacan, Tlacopan, Iztapalapa e Coyoacan estavam ricamente vestidos, mas descalços, como símbolo da sumissão a Montezuma e aos estrangeiros que lhes explicaram que vinham em nome de um Deus maior que todos, ao qual obedecia o imperador que governava a Espanha, novo dono daquelas terras. Inquiriram então sobre tal senhor, dono de tantas terras, e desse Deus, tão grande que se dizia único, ao que Cortês, de bom grado, os instruiu na doutrina cristã. Quetzalcoatl, a quem Cortês se referia como Sua Majestade Carlos V, lhes mandava a mais estranha das mensagens: de agora em diante, deveriam abandonar os deuses que exigiam deles homens vivos como alimento, por um deus vivo que era comido em sacrifício pelos homens.
sábado, 6 de dezembro de 2008
o livro de bolsa da mulher moderna...
Rainhas do Romance
Autoras best-sellers
Histórias consagradas
Romances Históricos
Medieval
Regência
Heroínas que desafiam a tradição
Guerreiros das Terras Altas
Nobres
Cavaleiros
Desejo
Emoção
Sedução
Família
Poder e negócios
Desejo Fuego
Romances modernos
Relações ardentes
Paixão Sexy
Romances contemporâneos e picantes
Cenários urbanos
Paixão
Cenários internacionais
Muito glamour
Destinos
Romance e suspense
Sagas. Trilogias.
Jessica
Sensualidade
Sofisticação
Heróis internacionais
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
de leveza são capazes diversos elementos, vários gases
rondou por horas
o tormento desde o telefonema
dela
chegou, finalmente, atrasado
rezando
para que já tivesse ido embora
então
teria uma desculpa para
sair por aí,
nenhuma mulher com o bom senso e o juízo
e o orgulho
no devido lugar, perderia a chance
seria o retorno à paz
e ao desespero
àquilo que mais estava acostumado:
a infelicidade familiar traduzida
pelo gosto de nada na boca, involuntária,
a saliva
começou a descer-lhe
pela carne,
ganchos de ferro arrancavam
nacos de pele, tufos, fios soltos,
(a libra de Shylock)
o apartamento em polvorosa
uma meia de náilon pendurada numa cadeira
como o rabo de um gato
que não pode mais
sorrir
sábado, 29 de novembro de 2008
As Origens do Romance
Melinde hospício gasalhoso e caro;
O Rapto rio nota, que o romance
Da terra chama Obi; entra em Quilmance.”
(Luís de Camões, Lusíadas, canto X, 96, 5-8)
Romanço ou romance, assim se nomeavam as variantes locais do latim vulgar, que se desenvolvem após a derrocada do império romano entre os séculos V e IX. A sua origem encontra-se na locução adverbial romanice loqui, literalmente, “falar à moda românica”, ou seja, a fala plebéia e popular, por oposição a latine loqui, “falar do jeito latino”, vale dizer, na linguagem oficial da regra culta.
Romanço (romancium) forma-se por substantivação do advérbio romanice e apresenta desenvolvimento semântico bívio: de língua vulgar, forma corrupta e divergente da fala romana, passa a designar a “fala popular de um país” de um modo geral; por outro lado, romance evolui também para “poema narrativo composto em língua popular” ou “conto, canção e narrativa em prosa”, noção hoje predominante.
Na primeira acepção, atualmente em desuso, vai acima o verso camoniano (é de notar no mesmo fragmento o uso de ‘rapto’ no sentido original de ‘rápido’); da segunda vertente, ainda transparece o antigo sentido em vocábulos como romanceiro, “coletânea de cantigas e contos folclóricos”.
Pode-se falar propriamente de romances hispânicos (o português resulta da transformação de um destes romanços, o galego-português), romances italianos, romances gauleses e assim por diante. Caso se mantenha como língua franca da Web, especula-se que o inglês ― língua de estrutura gramatical simples e regular, além de riqueza léxica ― pode vir a originar diversos dialetos locais. Novos romances (nu romances).
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
METAPHYSICS OF BEAUTY
domingo, 23 de novembro de 2008
TVENDOPASSAR
mim
caminhando na multidão
por um breve instante
uma mulher
reflete o odor da vitrine
painel sinestésico, êxtase
mediascape
todas as histórias
já foram vividas
cada um destes lugares
visitados
por todos
aqui só há signos
ultra-violência
mais-que-realidade
vida por procuração
(pain by proxy?)
ou reciclagem permanente
FIQUEI ASSIM
DEPOIS DE
W. BENJAMIN
sábado, 22 de novembro de 2008
por que não me ufano... de ser h(um)ano - parte II
Deixem-me contar-lhes uma história que está acontecendo agora mas não parece, que neste exato momento é uma não-notícia, de tão escondida que fica na pauta das notícias e crises que não têm importância nenhuma:
“Começou de novo. Trezentos e cinqüenta mil. Talvez nunca tenha cessado de fato, pode ser até que nunca vá parar; pode ser que seja este o limite do humano: a recusa em desligar o horror; não vamos, não podemos, abrir mão da barbárie por mais que protestemos o contrário, por mais que não queiramos ver o que é o duplo da civilização, ou quem é a sombra deste animal atormentado acima de tudo que sofre e faz sofrer sobre a terra. Em poucos meses, milhares de mortos e milhões em fuga de suas cidades, seus porcos, suas galinhas, as plantações de mandioca, as suas casas. Claro, existem as associações humanitárias para aplacar a má consciência. Em alguns lugares há caixinhas de donativos na saída dos supermercados e os inevitáveis shows de rock para ajudar os refugiados. Não consigo deixar de pensar isto: já são neste momento 350 mil, a continuação de um massacre ocorrido há 14 anos que vitimou 1 milhão. Repito: um milhão de pessoas mortas em pouco mais de três meses. Houve um deus a que chamaram o Senhor das Moscas, o Príncipe dos Mosquitos, porque todos os insetos do mundo eram poucos para lamber o sangue sempre fresco das vítimas humanas que besuntava sua imagem. Mas isto foi na antiga Síria, este massacre está acontecendo na África, ao vivo, neste instante, on line, Apocalypse Now! Não quero mais concertos bem intencionados, nem as tropas da ONU chegando lentamente ao ‘teatro das operações’, nem os remédios e mantimentos sendo atirados de cima de aviões Hércules; esta não é apenas uma questão humanitária. Não quero livros-reportagem de jornalistas investigativos dez anos depois, não quero filmes-denúncia, QUERO OS NOMES DE TODOS OS CANALHAS, JÁ!! Quando vi o palhaço de óculos e gravata falando na Assembléia das Nações Unidas, logo reconheci, quando vi o palhaço de uniforme militar sentado numa cadeira com a bengala de castão prateado, entendi. Eles voltaram, ou antes, eles nunca saíram de lá. São os mesmos, sempre diferentes e sempre somos nós. Matam por fronteiras que não existem, matam por deuses que não têm nome, matam por riquezas que não ficarão em suas mãos, por etnias inventadas; matam em carnificinas que vingam outras carnificinas, orquestradas por outros palhaços sanguinários chamados de heróis da pátria. Trezentos e cinqüenta mil seres humanos massacrados, estupros em massa, meninos com metralhadoras a tiracolo, adolescentes chefiando pelotões, mutilações, incêndios, lavouras destruídas ― o homem chegou. Enquanto trilhões salvam bancos e mercados, milhões de pessoas vão para a barriga do grande Moloch. Há minérios lá, no Coração das Trevas, há manganês, ouro, diamantes e agora a preciosa colombita-tantalita, necessária para os computadores e celulares que eu e você usamos. Colateral damages do desenvolvimento. Cadê a tal da ‘imprensa livre’? Então ficamos assim, vou dando os nomes dos bois que conheço e quem souber mais, fale por favor: Mr. Dick Cheney, Mr. Dominique de Villepin (bonitinho, mas ordinário) e Mrs. Mitterand, père et fils. Vamos lá, não quero pensar que a humanidade é só um bilhete de ida pra lugar nenhum. Já são trezentos e cinqüenta mil.”
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
a moeda nº1 (sobre perdas, relíquias, coleções, fetiches e perdição)
Tio Patinhas ganhou uma moeda, primeiro fruto do seu trabalho, quando ainda era criança. Guardou-a. A moeda o desperta para a sua condição de sujeito de seu destino, em suas mãos está o arbítrio de fazer dela (e de si, portanto) o que quiser. Estamos autorizados a pensar que sentiu uma felicidade inefável e que tirou a moedinha de circulação como forma de conservar a memória daquela sensação. O tostão como ponto inicial do milhão ― e tudo poderia ser apenas uma parábola edificante acerca da acumulação capitalista ou uma caracterologia ingênua do temperamento obsessivo. Patinhas é um pato precoce, menos por ostentar suíças ainda patinho do que por ter descoberto a diferença entre prazer e gozo; neste, não se trata de satisfazer uma necessidade, física ou psicológica, mas de privar os outros do gozo que imagina que as moedinhas lhes proporcionam. Para que um tenha muito, lembremos, é preciso que muitos tenham pouco.
Acontece que o óbolo do jovem pato ganhou também uma natureza segunda, mágica, suprarreal, transcendendo sua função de troca e adquirindo valor cultual: a moedinha nº1 passa a ser intocável e ganha uma redoma que a separa do mundo profano. Como disse a imagem do Cristo a seus discípulos, noli me tangere. O objeto corriqueiro sofreu, assim, um extravio do seu lugar original, o envelopamento do tabu o tomou; de agora em diante está protegido no campo do sagrado por seu estatuto de relíquia. Captada no desvio-desvão da palavra, a relíquia não pode ser comprada nem vendida ― só pode ser transmitida ou roubada.
Patinhas cresce: de jornaleiro vira jornalista e, depois, dono do jornal A Patada. À primeira moeda seguiram-se muitas outras, ele fica rico, milionário, mais que isso: quaquilionário. Mas isto não o livra de ser presa da insegurança ante a possibilidade, bem real, de perdê-la para competidores invejosos de dentro e de fora da família. E é aqui que nos deparamos com o primeiro movimento do jogo de sentidos que o objeto-relíquia introduz: a relíquia é precisamente o objeto pelo qual se passa de uma significação a outra, sua plena visibilidade deveria garantir a Patinhas uma defesa contra a angústia de destruição, ainda que, paradoxalmente, participe dos mistérios da morte, até porque é a prova (material) dela.
Tio Patinhas sofre como o Fausto do poema de Goethe: quanto mais se expande e desenvolve seu império, mais infeliz se torna; contraditoriamente, na medida em que acumula, perde. Ora, se Patinhas/Fausto ganham mais e mais daquilo que os outros valorizam ― dinheiro, poder, fama, glória, gozo ―, em que nível se dá a perda? A derrota de Patinhas no que diz respeito à angústia ocorre logo de saída, enquanto amealha sua fortuna intui que algo lhe escapa: o sobre-investimento da moeda nº1 tem o dom ambíguo de realizar e estancar o luto da satisfação perdida, uma vez que a sacralização da lembrança também o adverte, por outro lado, do seu esquecimento. Se Patinhas é viciado na felicidade antiga, Fausto dirige (também inutilmente) sua vontade titânica para o presente, o Augenblicke, o piscar de olhos em que se esvai uma vida humana. Fausto é um adito no instante que passa.
O mesmo fenômeno se observa no Cidadão Kane de Orson Welles, pois Patinhas/Fausto também é Charles Foster Kane ― como todos nós, aliás ―, já que todo o sortilégio de seu gênio, toda a operosidade e esforço que emprega, não são suficientes para trazer de volta o que o tempo levou (rosebud). Kane se lança com fúria ao colecionismo: o trenó que perdeu junto com a infância é irrecuperável, por mais que construa um império midiático, que compre empresas, objetos de arte (estátuas principalmente), pessoas... Patinhas, um solitário como Kane e Fausto, poderia ser apenas uma radicalização da figura do avaro: um Harpagon que, em vez de enterrar seu ouro no jardim, encerrasse a si próprio na Caixa-Forte ― fortaleza-prisão que serve de fachada a um de banco de auto-investimentos narcísicos.
O que deveria ser o ponto de solda da supra com a infraestrutura supõe bem mais uma engrenagem de peça única: a moeda nº1 seria inútil sem a fortuna conseqüente, bem como esta seria impossível sem aquela, afinal, o capitalismo vive de boas estórias; cases de sucesso. A livre iniciativa se cumpre na, e pela, historicização das pulsões que constantemente deslocam a relação entre capital e trabalho e, para isso, se estrutura como trama ideológica, uma colcha de retalhos sempre incompleta de narrativas pessoais e coletivas. Ao inscrever o seu mito pessoal na dinâmica histórica da riqueza, o pato mais rico do mundo nos ensina preciosas lições sobre as formações substitutivas com valor de compromisso, a saber, relíquias e fetiches. Transformando uma moeda em relíquia, ele denuncia a alquimia social pela qual os produtos do trabalho se tornam mercadoria e esta, dinheiro.
Vestindo sobrecasaca, cartola, pince-nez e polainas, ainda assim Patinhas está nu da cintura para baixo.
Todos falham: Kane não pode comprar o talento que a sua amada não tem, Fausto não pode ser imortal. E Patinhas? Tio Patinhas, que junta moedas em sua caixa-forte como Casanova contabiliza amantes, não pode ter todo o dinheiro do mundo, pelo simples motivo que este, se não circular, não funciona. O triunfante fracasso de Patinhas não deixa de suscitar a emulação (e, claro, a inveja), tanto nas hostes do Bem como do Mal. O sobrinho-looser Donald tenta a carreira de jornalista, mas não ascende como o tio; o sobrinho-sortudo Gastão tem sorte, mas não chega a entesourar fortuna como o miliardário. Do lado do Mal, os Irmãos Metralhas não se cansam de tentar arrombar a residência-cofre e a Maga Patalógica de cobiçar seu amuleto de poder. O malogro deles deveria nos alertar sobre a perversão fetichista que rege o sistema em que vivemos: o perder e conservar contidos na relíquia são lados de uma moeda que sela um compromisso-parada em detrimento de uma verdadeira transvaloração da realidade.
O que aconteceria se em Patópolis um inédito buraco negro financeiro drenasse todo o dinheiro para a casa-caixa do ricaço avarento numa antibolha especulativa? Seria de se supor que, inteirada a série que começa na moeda nº 1 e afastada a ameaça representada pela ciumeira da comunidade, Patinhas finalmente encontrasse a paz. Muito provavelmente não. Seja em Patópolis, Manhattan ou Garanhuns, uma vez que se acede ao desejo, este desliza inexoravelmente de objeto a objeto, da mesma forma que, na linguagem, o sentido se desloca numa cadeia de significantes cujo início está interdito e cujo fim não se avista. No momento em que se apossa ― legalmente, é bom salientar ― de objetos que poderiam pertencer a outros (a série de moedas que vai ganhando), ele passa do gozo ao desejo, e aqui já se está no campo do Outro, onde o desejo serve à pulsão. Sendo um respeitável cidadão patopolense, Patinhas sofre do malestar da civilização, e.g., tem um Superego que se alimenta de pulsões insatisfeitas, vale dizer, daquilo que inevitavelmente falha como gozo. Nem todas as moedas do mundo restituiriam ao Tio Patinhas a magia do instante inaugural.
A angústia de não encontrar o inimigo
A idéia de que não somos reconhecidos como deveríamos,
os objetos agem
Se alguém numa madrugada tocasse
feridas recém-abertas
ou dissesse que estou preso a uma esfera
que nunca se rompe
nenhum poder se iguala àquilo:
um pássaro
durante seu vôo e a curva de uma pedra
arremessada
têm arabescos fluidos, redes disformes, riscos discordantes
balanço
o zumbido dos insetos transforma a duração
a dor
ocupa todo o pensamento, tudo
se move
de grau em grau
imaginariamente
Compreender aquilo a que estamos fadados significa estarmos conscientes de que isso é diferente de nosso destino.
Para operar no mundo
é preciso entender
como o mundo opera
você sabe?
Não quero porque não sei como vai ser
porque não sei como vai ser, estou achando estranho estar aqui
queria entender melhor as minhas reações
umas horas fico muito emocionada
montagem a partir de obra de Valéria Calado
e outras não sinto nada
como se estranhasse a mim mesma
Não quero ser uma adulta
que minta
que seja ambiciosa
que perca esse lado de criança
Você sabe por que sou assim?
terça-feira, 18 de novembro de 2008
presente de nascimento
“Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito ensombra o coração e se o aedo
servo das Musas canta a glória dos antigos
e os venturosos Deuses que têm no Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons (dora) das Deusas.
Alegrai, filhas de Zeus, daí ardente canto,
Gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram da Terra e do Céu constelado,
os da Noite escura, os que salgado Mar criou.”
(Hesíodo, Teogonia, vv. 98-107).
É simples assim: doreá, dádiva, dom, é um presente de nascimento, posto que inaugura um começo. Não custa caro, uma pessoa pode ver, escutar ou pressentir um dom noutra pessoa, e presenteia. Sendo um dom, a doreá vem do passado, mas, se fará presente no futuro. Por isso, a doreá é passado e futuro, que se dá de presente (era isso que Platão e Aristóteles procuravam com suas reminiscências: presentes de nascimento).
{na falta de melhor filosofia, antropologia ou psicanálise, qualquer presentinho pode fazer esquecer que a outra pessoa não te escuta}.
aos 9 anos já tinha perdido pai e mãe, hoje cato papelão, sons, plástico, cores, latas
episódio
na estrada emerge um caminho de
experiência feito, sensação
memorável porque criou
a surpresa
apaixonar-se
a melodia solta no espaço
sem ritmo, sem groove,
a ranhura faz a diferença
que servirá de alicerce
(a levada)
mesmo se for a primeira vez: reverbera
encontrando aquilo que poderia
ser de qualquer
um
o amor é um jogo de perdas
certas
o amor é um jogo de lucros
arriscados
ao menos tenho o ódio
certeiro
vidente
nele, meu claro demais
espelho
os amantes se incrustam
nos pedaços de concreto
que coloriram
um novo movimento
distribuído
à cidade
imaginação
domingo, 16 de novembro de 2008
Seus atos e verdades suportam a indeterminação?
Foto do espetáculo "Bandoneon 2" de Pina Bausch
“Ademais, se as contradições são todas simultaneamente verdadeiras ditas de uma única coisa, é evidente que todas as coisas serão uma única (...) Assim, pois, os filósofos que afirmam isso parecem falar do indeterminado (aóristós), mas, acreditando falar do que está sendo/ ente (óntos), falam do que não está sendo / não-ente (me óntos). Pois o que é em potência e não em ato é o indeterminado” (Aristóteles, Metafísica, 1007b).
Aprende-se nos manuais de filosofia e de lógica que Aristóteles foi quem formalizou o princípio de não-contradição: uma coisa não pode ser verdadeira e não verdadeira ao mesmo tempo. De fato, diz o filósofo estagira, algo é verdadeiro quando, sendo de determinada maneira, é uma coisa e não outra. No entanto, a determinação,
o horizonte (horizo), surge da indeterminação (aoristía), como a verdade (alétheia) surge da potência do esquecimento (léthes). Assim, mesmo representando uma única possibilidade de determinação, a verdade evoca o espectro de indeterminação donde ela surgiu. É isso que lhe dá força: a indeterminação que ela suporta, e não, apenas, a determinação que ela representa.
No caso da amizade, a verdade de um abraço pode evocar a potência da indeterminação (aoristía) de onde ele surgiu. Nesse sentido,
a verdade traz em si as dificuldades que enfrentou para surgir,
e sugere outras possibilidades de surgimento. É diferente de um falso abraço que não pode evocar uma potência de indeterminação, e que não faz surgir mais nada.
{o aoristo é uma forma de declinação verbal que não especifica se a ação acabou ou não, uma indeterminação temporal}.
sábado, 15 de novembro de 2008
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
por que não me ufano... de ser h(um)ano - I
se perder a memória
torno-me outra(s) pessoa(s)
ou fico cada vez mais
igual a mim mesmo?
o errante sem bagagem
solta o lastro da essência
mas conserva a paixão urgente
do acidental
neste caso a ipseidade
é seguramente um problema
metafísico
não seria mais uma
ilusão?
examinemos as soluções tradicionais:
- não podendo fazer a justiça ser forte
procura-se fazer com que a força seja justa
- se a autonomia é fonte da ética, pode a liberdade
intercambiar de meio a fim
- na Inglaterra medieval, ‘person’ na paróquia,
só o padre
- o rei pede um espelho quando os súditos falham
em lhe reconhecer a majestade
- os outros me vêem, em mim alguém me pensa,
ontologia do ator...
o (hu)mano devém um ser moral
(e nunca mais tira férias disso?)
beijar a boca
que me escarra
afiar
a garra que me afaga
Tanto te amo que te odeio
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
A sedução da verdade - o engano
do grupo Nederlands dans theater ballet
"Seduzidos pela sua beleza, os homens envolverão de amor essa peste que lhes foi enviada, que eles não podem suportar, mas sem a qual não poderiam viver: é o diferente e a companheira dos homens. Réplica à artimanha de Prometeu, Pandora é também uma astúcia, um engodo, um dólos (artifício), o Engano feito mulher,
Feita de barro, Pandóra (pãn - todo + dõron - presentes)
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
Germe de uma riqueza de alguns dias
Foto do espetáculo "Vollmond" de Pina Bausch
No ensaio “Sobre a essência da verdade”, Heidegger se pergunta:
o que faz de uma moeda verdadeira? A comparação entre as moedas, esse é o critério. Mas a semelhança entre moedas de brinquedo não faz com que elas tenham valor de mercado. É algo externo que faz com que as moedas tenham algum valor. Esse mesmo algo externo faz com que o dólar seja valioso e a moeda do banco imobiliário sem valor. Tema grego por excelência, esse invisível que confere valor à moeda é o que a dignifica, justamente, por ser um dissimilitudo, um diferente absoluto (livre).
Por não ser inerente às coisas, o valor muda constantemente. É isso o que Aristóteles chama de vida (zoe ou phýsis): refletir, com o passar do tempo, mais ou menos valor. A lógica é simples: muita cópia, menos valor, ou seja, a produção de moeda provoca inflação (a mesma moeda repetida inúmeras vezes na memória basta,
até um sonho pode virar rotina).
No banco imobiliário isso não ocorre porque não há um mercado vivo.
Em toda sociedade, todo clã, toda família, há o recurso de eleger uma pessoa que não seja exatamente como as outras. Essa tal pessoa seria o valor das coisas que refletem valor, e visível, olha só que beleza. O papel dessa pessoa é estar no centro das relações de troca. Com ela ali, nada de inflação, de instabilidade, como se fosse um banco imobiliário. A pessoa passa a ser motivo e razão da existência das demais, como Édipo para sua cidade.
Ninguém está bem neste jogo, longe da força pulsante do valor que evapora para reacender noutro lugar. Atento à questão, Derrida encontrou um curioso phármakon. No livro A moeda falsa ele analisa um poema de Baudelaire, que foi amigo do socialista Joseph Proudhon, que não gostava mesmo de moedas. A tese de Derrida é que uma moeda falsa que se misture às outras pode ter um efeito terapêutico (libertário). Quando o sistema de valores das coisas passa a funcionar com uma moeda falsa, percebe-se que não era a semelhança entre as moedas que lhes conferia valor. Para exercer essa tarefa, a moeda falsa precisa ser semelhante às outras o suficiente para enganar, mas diferente o suficiente para instigar uma reflexão. E o mais interessante, a moeda falsa pode dar origem a um novo sistema de valores, pelo menos, enquanto refletir algo de estranho, de invisível:
“A moeda falsa talvez fosse, também, para um pequeno especulador, o germe de uma riqueza de alguns dias”. {Baudelaire, C. Pequenos poemas em prosa (trad. Gilson Maurity), p. 167}.
Alguém poderia questionar: então, tudo o que está vivo perde o valor? Sim, mas, uma sociedade que reencontre suas moedas falsas pode mudar e continuar valiosa, sem romper a união, posto que nem toda união é covarde. Ah! Estava esquecendo, Derrida chama a moeda falsa de sorte (tykhé).
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
DISSIMILITUDO
no calendário
há os dias pretos e os dias vermelhos
em vermelho são as festas e feriados, nacionais e internacionais, como o Primeiro de Maio
os dias em preto são quase todos
os dias
a história acontece em dias pretos
mas é lembrada nos dias vermelhos
tive pena do cão magro na rua
vivi um romance no cruzar de olhares
dentro do elevador
com isso os dias pretos ficam pretos
sem compaixão, sem amor
recordar
é fazer passar de novo pelo coração
precisamos celebrar sem dia especial
qualquer micro-explosão do ser
realçar os pequenos momentos afetivos
amputar a seqüência neurótica que repete
gastos fantasmas
comemorar
(lembrar junto)
re-produzir memórias íntimas, compartidas
e então abandono a idéia de tempo como sucessão
de eventos
e já não sei mais que dias são pretos ou vermelhos
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Dissimilitudo – dessemelhança - diferença
CONVITE INVISÍVEL
você já se imaginou parte de uma experiência dessas?
cadastre-se na invisibilidade:
http://www.igrejainvisivel.com/home/cadastrar.php
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Martýrion
Foto do espetáculo "Bardo" de Toru Shimazaki
“deî gar hyper tôn aphanôn tois phanerois martyríois khrêsthai” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1104a).
“pois devemos recorrer à prova/ testemunho (μαρτυρίοις) das coisas visíveis em defesa das invisíveis”.
No latim cristão martyrium significa: testemunho de fé, o que se consagra a um santo. (Dictionnaire étymologique de la langue grecque, p. 660).
"In Japanese, 'bardo' describes the uneasy, suspended state of body and mind in the weeks immediately after death. " (Hedy Weiss, Chicago Sun-Times, September 2006).
domingo, 2 de novembro de 2008
Reminiscências
Foto do espetáculo "Bach" do grupo Corpo
“Algumas pessoas se perturbam por não poderem (δύνωνται) rememorar, não apenas quando focam todo o seu pensamento nisso, como quando tentam não rememorar, isso é mais intenso
sábado, 1 de novembro de 2008
ÉL
la presencia de lo inconmensurable
la tarea del artista:
atisbar qué passa en el
espíritu del mundo
el delirio no es sino una percepción empobrecida, desmembrada e incomunicable, aunque también una proliferación de significaciones inesperadas y la creación de un lenguaje nuevo con una coherencia interna y muchas resonancias poéticas para poder articularlas
las cosas son y
contemporáneamente significan más allá
del área habitualmente compartida
el artista establece asociaciones inmotivadas,
incomprensibles
desde el entretejido
intencional intersubjetivo
el mundo se torna autista y, con ello, lo contrario de mundo
hablamos entonces de
la metamorfosis de los significados y de las demandas parcelarias, y a la emergencia de honduras simbólicas que acercan a la institución de una realidad otra (una anti-realidad) inmersa en la epifanía de lo imaginario y en la fabulación del sueño
el mundo se le vuelve opaco, gigantesco y totalizador
sus imágenes superan la realidad
y se convierten en desiertos,
en páramos invasores,
su historia biológica y/o cultural
le pesa como una piedra de molino
atada al cuello
la invención de mundos se colorea de un color determinado (el color del yo)
construcción y constitución; el efecto de la primera es extraño al que construye, el de la segunda es parte de la vida del que constituye:
puede el pedrero construyer la casa del vecino, pero no podrá habitarla
chegada do trem a ‘La Ciotat’
Mulheres com saias longas indo buscar lenha
o colorido das roupas, o verde do campo
tudo acontece lentamente:
caminhar pelo campo
buscar a madeira
quebrar os galhos
amarrar os feixes
colocá-los na cabeça
e voltar
o rosto da mulher
o homem numa ilha distante
aventureiro, poeta e explorador
ele fala:
― as pessoas querem vidas de ficção e os personagens
aspiram a uma vida real
ela fala:
― apresentação, evolução, reviravolta, recomeço, clímax
Desfecho
― o terrível neste mundo é que todos têm suas razões
paguei pelos grandiosos prazeres
dores de barriga
náuseas
o eterno medo
invadido por uma sensação de culpa
que se acrescentava às emoções do espetáculo
3 estrelas de claridade maior que as outras
― prepare um povo para habitar a Terra no 3º milênio
Fazenda Metafísica e Teológica Princípio de um Reinado
Sadabi, filho de Jeová
irmão de Jesus
neto de O Eterno
uma criança nasce dentro de um ônibus
um homem é confundido com assaltante em um táxi
uma mulher viaja com os ossos da mãe morta
dentro de uma caixinha de fibra
casas, igrejas,pousadas dos tropeiros
tudo de pau-a-pique
fortes arcabouços de madeira
cadeiras, mesas, camas
que parecem estar suspensas do chão
encontros
que nunca ocorrem
relacionamentos
que terminam de uma hora para outra
hematomas
que simplesmente surgem em nosso corpo
a chuva
que cai de um céu ensolarado
depois que começa
a televisão não sai mais do ar
(nem eu tampouco)
a vida inteira será um filme
um filme feito para a televisão
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
♀ VIDENTE ♂
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
amar e amar e amar e
Foto do espetáculo “Nó” de Deborah Colker
“Ouk ésti aploûn oude tó páskhein, allá to mén phthorá tis hypó tou enantíon, to dé sotéría mâllon hypó tou entelekheía óntos tou dynámei óntos kai omoíon” (Aristóteles, De anima, 417b).
“Certamente, sofrer/ padecer (πάσχειν) não é simples, por um lado, está sob o efeito da destruição/ sedução (φθορά) determinada pela adversidade, por outro, supõe a conservação/ liberação (σωτηρία) do ser em potência pelo ser em ato que se lhe assemelha”.
domingo, 26 de outubro de 2008
Minh bich tinh pirdid e já ficou co vid
eu misér tem curtin
ilôt tem cumen barrig chê
assim tinh pensam
eu já fez grand pecad
já deu pándig pu eu cumê e bebê
quand minh bôls ficou vaziu
vós num papiá par mim
fazê vós criad
e tud minh atli putli é d’ós
(dialeto Indo-Português de Damão)
Tradução:
Meu filho estava perdido, mas voltou com vida
misérias tenho curtido
outros comem e têm a barriga cheia
assim vinha pensando,
já cometi grandes pecados
vivi na pândega, comendo e bebendo,
até que fiquei de bolsos vazios
vocês não me ralhem
fazei de mim vosso criado
e ficai com todos os meus trastes
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
no turno da noite ― nas nossas veias acende-se um raio de luz
Libertei o sonho onde durmo, onde
nos teus olhos ilíricos
o nascimento e a morte acumulam
seu contágio
Superfície de encantos esquecidos
logo que descobertos
felicidade dos pequenos mundos
que há em almoxarifados e quartos de despejo
não separei nada:
luz, calor, dobras da ausência
ou a boca que sobe para a sua verdade
nem a agulha, forte como uma espada,
corri para a noite em que nos unimos
a noite arreganhada-agônica
numa luta suave e louca
a noite que humilha
a noite que cava desesperos
e solidão
e futuro
e o sol batendo à porta
fechando as asas
fluindo a carne doce da primavera
a nossa luz sustenta o vazio (que sustenta o desejo)
que sustenta a liberdade que o amor sustenta
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Sair da cena – o amor em Agostinho
Não sei da paciência do leitor para aprofundar uma questão, mas, aproveitei a noite impossível de dormir para repetir uma: tudo bem, os εiδος de Aristóteles, species em são Tomás, são como idéias platônicas, só que nesse mundo mesmo. Mas, o que significa afirmar, como Heidegger não se cansa, que o εiδος é a lembrança do ser? e o que é o ser?
Vamos aos poucos. Pode-se pensar o εiδος, posto que ele tem tudo a ver com a visão, como um ver-como (veja o Wittgenstein de Giannotti). Isso significa que o εiδος não é, apenas, o que é visto, nem mesmo ele é nossa capacidade de visão, o εiδος mostra como ver algo. Para Aristóteles, ele é eterno, como as idéias de Platão. Ou seja, uma vez que aprendemos a ver-como o εiδος nos mostra, podemos sempre ver daquela forma. Ainda segundo Aristóteles, o ser é potência, e, como tal, traz em si a perspectiva do negativo, do não-ser, do desaparecer. Ora, um εiδος que me aparece, mas que está em ligação permanente com um desaparecer em potência, não faz a apologia da imagem, faz a apologia do ver-como. Não é que o εiδος lembra o estrangeiro que volta à caverna, só que bem recebido.
o lençol em dia de domingo com sol, a comer papinha de bebê e a chorar ouvindo Billie Holiday. Como εiδος, Agostinho não nos prende a sua própria imagem, ele semeia minha memória com os aspectos da amizade.
servidão
Alair é de desmiliguir
ele tampa o nariz
e respira fundo
Caio a caminho do inferno
confere o recibo do banco
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
para conhecer o gosto da pêra é preciso comê-la
qual verdade
a minha mentira invoca
como garantia imanente?
quem é esse
ao qual estou grudado mais que ao meu corpo
mais que a mim mesmo
cimento/cemitério dos entes que me parasitam
do qual testemunham meus fetiches, calundus, covardias,
minha persona precariamente civilizada?
quem morre?
pergunta o verdureiro
aquele que usa máquinas
e é máquina em suas obras
tem coração de máquina
(por isso) perdeu a simplicidade
o que quer dizer
pensar?
se for não ter ainda desaparecido, digo que:
o meu desaparecimento é pior que todos os outros
(...)
a vizinhança com o ser
é apenas o parentesco mais radical
a dialética dos falsos objetivos
nega
que a ordem e a conexão das idéias
espelha
o caos e a dissolução
das coisas
Quem fala?
pergunta-fundamento
pressuposto político
revelação
ato de fé
daquele que mora
no Tao
auto-reflexão, ambigüidade, contradição: as mais belas faculdades da inteligência
esfumaturas tonais, apojaturas da voz, intensidades
colorísticas, concreções/rarefações, tempos em rubato,
variantes facultativas, gestos sonoros, traços
supra-segmentares, vibratos/sustenidos, inflexões
mímicas
o discurso não vem das palavras
nem elas estariam, dóceis, à sua espera
no aconchego dos dicionários, gramáticas, breviários de conjugação
no contrapelo da quietude
são as palavras que nascem do discurso
o pensamento já existia
antes da luz
ornado de ídolos, vestido de afetos
código perdido
de um falante nascido
mudo
a linguagem se esclarece por si mesma
sistema de sucessivos sistemas
de convenções
que se explicam uma às outras
Aspectos (εiδος) do mundo
“Com certeza, ainda hoje se costuma fixar a relação histórica entre Platão e Aristóteles por meio da seguinte explicação que recebeu múltiplas modificações: diferentemente de Platão, que considerava as ‘idéias’ como o ‘verdadeiramente ente’, enquanto só deixava vigorar o ente singularizado como aparentemente ente (simulacros - εiδōλον), degradando-o ao nível daquilo que não deveria se chamar propriamente um ente (não-ser - μē óν), Aristóteles arrancou as ‘idéias’ que pairavam no ar de seu ‘lugar supraceleste’ e as enraizou nas coisas efetivamente reais. Com isso, Aristóteles transformou as ‘idéias’ em ‘formas’ (aspectos - εiδος) e concebeu essas ‘formas’ como ‘energias’ e ‘forças’, que estão domiciliadas no ente” {Heidegger, Nietzsche, vol. II, p. 314}.
"As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender". Paulinho da Viola
A coisa é assim. Você não sabe que tem uma potência até que alguém te mostra um aspecto dela. Por exemplo, na amizade,
o abraço é um aspecto. O abraço é um ato, é um fazer – que os gregos chamam de poieîn, como a poesia. Antes do aspecto, temos sensações e percepções que entram pelos nossos poros, mas não provocam movimento, não animam, não geram vida, porque não tem onde e como serem represados. Enfim, o aspecto nos liga à potência da amizade, donde podem ser poetizados outros tantos aspectos, infinitamente. Para Platão, os aspectos estão nos céus. Para Aristóteles e Paulinho da Viola, os aspectos estão no mundo mesmo, mas é duro aprender.